A cardiologia em evolução
O papel da genética, novos insights sobre o tempo de DAPT e o infarto que não é tratado como infarto
Os benefícios e desafios da genética na cardiologia
Coorte (JACC)
🎯 Precisão. Em uma cardiologia que busca diagnósticos cada vez mais certeiros, a genética vem se consolidando como peça-chave, especialmente no universo das cardiomiopatias e arritmias.
Se antes sua principal aplicação era no rastreamento familiar, hoje ela tem o potencial de mudar o manejo clínico e até a história natural das cardiopatias hereditárias.
Um estudo retrospectivo de 14 anos, publicado no JACC, investigou o papel da genética no manejo de mais de 2000 pacientes com doenças cardiovasculares hereditárias avaliados no Montreal Heart Institute.
Os pesquisadores analisaram pacientes com suspeita de cardiomiopatias hereditárias e síndromes arrítmicas que realizaram testes genéticos. Além de avaliar a taxa de diagnóstico, eles compararam a frequência das variantes genéticas com uma população de referência para refinar a interpretação dos achados.
Principais resultados:
24% dos pacientes apresentaram uma variante patogênica ou provavelmente patogênica.
O teste mudou a classificação diagnóstica ou impactou o manejo clínico em 8% dos pacientes.
Pacientes com histórico familiar da condição tiveram maior chance de um teste genético positivo (44% vs. 20%).
🫠 Não é tão simples assim…
A interpretação das variantes genéticas ainda é um grande desafio, especialmente porque a maioria dos bancos genômicos utilizados como referência é composta por populações europeias e norte-americanas, deixando outras regiões sub-representadas.
Em outras palavras, uma variante rara em um banco global pode, na verdade, ser comum e inofensiva em uma determinada população, levando a diagnósticos errôneos e estratificação de risco imprecisa.
Foi por isso que, no estudo, os pesquisadores compararam as variantes encontradas nos pacientes com uma coorte de referência local, ou seja, um banco de dados genéticos de indivíduos da mesma população. Essa abordagem levou à reclassificação de 9 variantes genéticas que, com base em bancos internacionais, poderiam ter sido superestimadas ou subestimadas em termos de patogenicidade.
Em resumo, os testes genéticos têm um papel importante no diagnóstico e no rastreamento familiar, mas o impacto direto no tratamento clínico ainda não é tão claro para todos os casos.
O estudo reforça a necessidade de bancos de dados genéticos mais específicos, evitando erros de interpretação que podem comprometer a tomada de decisão.
É hora de mudar?
Grande debate (EHJ)
A cardiologia é cheia daquelas “discussões infinitas”, e a duração da dupla antiagregação plaquetária (DAPT) após angioplastia é uma delas. Todo ano o debate ressurge, embalado por novos estudos, novos stents, novos antiagregantes e novos escores de risco.
E aí, 12 meses ainda são o padrão-ouro ou já passou da hora de encurtar essa terapia? 🤔
O European Heart Journal (EHJ) entrou na briga e trouxe um debate de peso, colocando frente a frente os defensores da DAPT prolongada e aqueles que acreditam que abreviar o tempo de tratamento pode ser mais seguro e eficaz.
Difícil tirar uma única conclusão de um debate tão denso como esse, mas uma coisa é certa: a DAPT se consolidou como terapia padrão para reduzir eventos isquêmicos após uma SCA.
No entanto, a evolução do risco ao longo do tempo é um fator crucial nessa equação: os eventos isquêmicos caem progressivamente ao longo dos meses, enquanto o risco de sangramento se mantém estável durante todo o período de DAPT.
A questão que fica é: o benefício isquêmico justifica manter a terapia prolongada mesmo com um risco de sangramento contínuo? Esse é o equilíbrio delicado que precisa ser ponderado na prática clínica.
Vamos compreender os dois lados:
✅ Time pró-12 meses: os defensores da DAPT prolongada reforçam que os estudos que avaliaram monoterapia precoce (SAPT após 1 a 3 meses de DAPT) apresentam limitações como populações heterogêneas (o que torna difícil generalizar os achados) e a ausência de estudos primariamente desenhados para comprovar não-inferioridade em eventos isquêmicos e trombóticos.
❌ Time DAPT abreviada: mesmo com esses argumentos, a cardiologia de hoje não é a mesma de 10 anos atrás, com pacientes mais idosos e com maior risco de sangramento, stents modernos e com menor trombogenicidade.
A personalização do tratamento é cada vez mais necessária, fugindo do clássico “DAPT para todo mundo por 12 meses”.
No final das contas, a DAPT de 12 meses ainda é o padrão, mas a decisão precisa ser individualizada. Pacientes com alto risco isquêmico se beneficiam de manter a terapia prolongada, enquanto aqueles com alto risco hemorrágico podem se beneficiar da DAPT abreviada. É hora de jogar fora o seu carimbo automático de AAS + Clopidogrel por 1 ano.
O infarto que não deve ser tratado como infarto
Coorte (EHJ)
A dissecção espontânea da artéria coronária (SCAD) tem ganhado espaço nas discussões sobre síndromes coronarianas agudas (SCA), especialmente em mulheres jovens sem fatores de risco tradicionais para doença aterosclerótica.
Agora, um estudo robusto realizado na Austrália e Nova Zelândia jogou mais luz sobre essa entidade clínica, identificando fatores preditores de eventos cardiovasculares maiores (MACE) e recorrência.
O que o estudo revelou?
Foram analisados 505 pacientes diagnosticados com SCAD, sendo 88,6% mulheres, com média de idade de 52,2 anos. Durante um seguimento mediano de 21 meses, 8,6% dos pacientes apresentaram MACE e 3,6% tiveram recorrência da SCAD. Entre os fatores de risco identificados, os grandes vilões foram:
Uso de anticoagulação oral na alta hospitalar → Associado a um risco 3,8 vezes maior de MACE!
Terapia antiplaquetária dupla (DAPT) com ticagrelor + AAS → Aumentou o risco de MACE em 1,8 vezes e dobrou a chance de recorrência.
Presença de displasia fibromuscular (FMD) → Dobrou o risco de MACE e quase quadruplicou a chance de recorrência.
Histórico de AVC → Associado a um risco 6,2 vezes maior de recorrência.
Embora o manejo da SCAD ainda seja um território nebuloso, este estudo reforça que tratar SCAD como um infarto aterosclerótico pode não ser a melhor estratégia.
O uso de anticoagulação e antiplaquetários mais potentes parece exacerbar a patogênese da SCAD, que frequentemente envolve um hematoma intramural. Esse achado reforça a necessidade de individualizar a escolha do regime antitrombótico, evitando terapias excessivamente agressivas.
Assim, o estudo sugere que a displasia fibromuscular deve ser rastreada sistematicamente em todos os pacientes com SCAD, dada sua associação prognóstica relevante. Além disso, a escolha do regime antiplaquetário deve ser criteriosa, favorecendo aspirina isolada ou clopidogrel, e a anticoagulação deve ser evitada sempre que possível.
A SCAD não é uma condição inofensiva. Seu manejo exige um olhar atento, evitando a aplicação automática dos protocolos de infarto aterosclerótico.
(100) Dias com ele
Caiu na Mídia
Alcançamos um novo marco no tratamento da insuficiência cardíaca terminal: um paciente australiano viveu por 100 dias com um coração artificial de titânio, tornando-se a pessoa que mais tempo sobreviveu com essa tecnologia antes de receber um transplante.
O dispositivo em questão foi o BiVACOR Total Artificial Heart, implantado em novembro de 2024, no St. Vincent’s Hospital Sydney. Em fevereiro, tornou-se o primeiro paciente do mundo a receber alta com o dispositivo, permanecendo com ele até um coração doador estar disponível neste mês.
Diferente dos dispositivos de assistência ventricular (LVADs) que conhecemos, como o HeartMate II e III, que apenas auxiliam o ventrículo esquerdo, o BiVACOR TAH é um coração artificial completo, substituindo ambos os ventrículos cardíacos.
Ele possui um único componente móvel, um rotor suspenso por ímãs, sem válvulas ou rolamentos mecânicos, reduzindo o desgaste, e é capaz de bombear sangue para os pulmões e para o corpo, assumindo completamente a função cardíaca.
Assim, essa tecnologia pode mudar a realidade dos pacientes com IC avançada que aguardam o transplante, funcionando como uma ponte ou até como uma solução definitiva para pacientes que nunca conseguirão um coração doador.
Essa tecnologia já passou por estudos nos EUA, incluindo um ensaio clínico conduzido pela FDA. Em 2023, um paciente em Texas Medical Center sobreviveu oito dias com o dispositivo antes de receber um transplante. Outros quatro pacientes também foram implantados, com a expectativa de expandir o estudo para 15 pessoas.
O transplante cardíaco pode estar prestes a ganhar um plano B realista?
O coração artificial de titânio manteve um paciente vivo e fora do hospital por 100 dias, um avanço que pode revolucionar o tratamento da insuficiência cardíaca terminal. A pergunta agora é: será que um dia essa tecnologia substituirá completamente os transplantes?
Imagem da semana

Imagem de ecocardiograma de paciente com Doença de Fabry, na qual observamos a presença do Sinal Binário, ou seja, um endocárdio hiperecogênico com uma camada subendocárdica adjacente hipoecogênica.
Apesar de sensibilidade e especificidade limitadas, é um achado, que junto ao aumento da espessura miocárdica e do papilar no ecocardiograma, alterações eletrocardiográficas, e redução do Mapa T1 com realce tardio inferolateral na ressonância magnética, pode nos auxiliar no quebra-cabeça das cardiomiopatias.
Seu giro preferido da semana
🚬 Fumou? Seu coração lembra por décadas! Estudo com 182 mil pessoas mostrou que o tabagismo tem relação dose-dependente com inflamação, trombose e aterosclerose. Mesmo quem parou há 30 anos ainda tem CAC 19% maior.
⚡ 30 anos de CDI na síndrome de Brugada: proteção, mas com desafios! Estudo com 306 pacientes mostrou que 14% tiveram arritmias ventriculares sustentadas, mas 15% receberam choques inapropriados e 27% precisaram de revisão do dispositivo. Ablação epicárdica reduziu eventos ventriculares em alto risco.
🪢 Angioplastia guiada por reserva de fluxo fracionada ou cirurgia na DAC triarterial? Análise do FAME 3 mostrou que o bypass seguiu superior à angioplastia em 3 anos, independentemente da presença de diabetes (P para interação = 0,94). Diferença desaparece se o escore SYNTAX for baixo (<23), mas com SYNTAX ≥23, o risco de eventos foi maior com angioplastia.
🩸 Aspirina para prevenção primária: uso caiu, mas ainda persiste onde não deveria! Estudo com 18.294 participantes mostrou que o uso de aspirina caiu de 23,5% para 17,2% após as diretrizes desaconselharem seu uso em idosos e baixo risco cardiovascular (P < 0,001).
🦠 Menos antibiótico, mesmo resultado! Estudo multicêntrico publicado no NEJM com 3.608 pacientes hospitalizados com infecção de corrente sanguínea mostrou que 7 dias de antibiótico foram não inferiores a 14 dias em termos de mortalidade em 90 dias (14,5% vs. 16,1%).
🎱 Trombo ventricular esquerdo: diagnóstico subestimado e manejo ainda indefinido! Interessante revisão publicada no HEART discute a fisiopatologia, o papel da multimodalidade de imagem e novas estratégias com anticoagulantes orais diretos, além de propor um algoritmo baseado em diretrizes e consenso de especialistas.
🎉 Já passou o carnaval, mas o European Heart Journal continua fazendo retrospectivas do ano que passou! Os 10 principais artigos de 2024 sobre trombose e tratamento antitrombótico.