Até onde vai o preço da saúde?
Do risco cardiovascular nos bodybuilders até questionamentos sobre o ticagrelor
Bodybuilders e o coração: o preço oculto da hipertrofia
Coorte (EHJ)
Um estudo internacional inédito, publicado recentemente no European Heart Journal, acendeu o alerta máximo sobre os riscos cardiovasculares no universo do fisiculturismo competitivo.
Pesquisadores acompanharam mais de 20 mil atletas masculinos que disputaram campeonatos oficiais da Federação Internacional de Fisiculturismo (IFBB) entre 2005 e 2020.
O levantamento identificou 121 mortes, sendo que 46 foram mortes súbitas cardíacas (MS), principal causa de óbito entre esses atletas.
O dado mais impactante: entre profissionais, a taxa de SCD foi 14 vezes maior do que entre amadores!
Principais achados que merecem atenção:
A incidência de MS em fisiculturistas competindo ativamente chegou a 33 casos por 100 mil atletas/ano, número muito superior ao observado em outros esportes.
A maioria dos laudos de autópsia relatou cardiomegalia e hipertrofia ventricular severa, achados que vão além do remodelamento fisiológico do “coração de atleta”.
O uso de esteroides anabolizantes esteve presente em parte significativa dos casos – e é apontado como importante fator de risco.
Além dos riscos cardíacos, houve mortes relacionadas a problemas renais, acidentes e suicídios, reforçando o impacto psicossocial deste ambiente.
Diferente de outras modalidades que se associam a maior expectativa de vida, o fisiculturismo profissional parece carregar um fardo de risco que cresce conforme o atleta avança na carreira e intensifica práticas extremas de ganho muscular, restrição calórica e uso de substâncias.
O estudo não criminaliza a prática esportiva, mas sinaliza a necessidade urgente de:
Protocolos de avaliação cardiológica periódica, incluindo ECG e ecocardiograma.
Monitoramento psicológico e programas de saúde mental, prevenindo transtornos de imagem corporal e riscos de comportamento suicida.
Fiscalização e educação contra o doping, com políticas antidopagem mais eficazes.
O fisiculturismo competitivo tem enorme impacto cultural e influencia milhões de praticantes recreativos. Por isso, os autores destacam que não se trata apenas de proteger atletas de elite, mas também de conscientizar toda uma geração que enxerga o corpo como produto e que, muitas vezes, desconhece os riscos cardiovasculares que esse ideal pode custar.
Uma surpresa no meio das placas
Artigo de revisão (EHJ)
Sabe aquelas perguntas de churrasco estilo “qual o maior órgão do corpo humano?” ou “qual a parte mais sensível do corpo?” Pois é... aqui vai uma que deveria entrar no repertório dos cardiologistas: qual é o principal tipo celular presente nas placas ateroscleróticas?
Resposta rápida: célula muscular lisa (CML). Surpreendeu? Porque a gente também ficou.
O European Heart Journal publicou uma revisão de peso lembrando a todos que as CMLs não são coadjuvantes, e sim protagonistas na formação, remodelamento e até na vulnerabilidade das placas. Elas participam desde o comecinho da história da aterosclerose: migram para a íntima, viram foam cells, secretam matriz extracelular e ainda decidem se a capa fibrosa vai ser grossa e protetora ou fina e vulnerável.
Sim, elas moldam o futuro da placa e do paciente!
E no mundo da medicina de precisão, isso é ouro: alvo terapêutico real e promissor. Já temos drogas atuando nessas vias — e muitas outras vindo por aí:
Interleucina-1β – No CANTOS, bloquear IL-1β com canaquinumabe reduziu eventos cardiovasculares em pós-IAM com PCR alta.
Colchicina – O COLCOT mostrou que ela aumenta a espessura da capa fibrosa, e isso vem da proliferação das boas e velhas CMLs.
Redutores de LDL – Estabilizam placas e mobilizam CMLs na direção certa.
Anti-CD47 – Novidade no pedaço: reduzem inflamação e o conteúdo lipídico da placa, além de impactar o comportamento das CMLs.
O recado que fica? Da próxima vez que ouvir alguém dizendo que placa é só “gordura na artéria”, lembra que por trás da gordura… tem músculo. E que talvez esse seja o verdadeiro alvo das terapias do futuro.
Senta e levanta
Coorte (EHJ)
“Sentar e levantar”. Está aí um tema que o brasileiro conhece, e bem, nas suas músicas rs. Mas agora esse movimento ganhou um upgrade científico!
Um grupo de pesquisadores cariocas, em parceria com autores norte-americanos, publicou no European Journal of Preventive Cardiology um estudo que avaliou se a capacidade de sentar e levantar do chão, sem apoio, pode prever mortalidade. E, acredite, pode mesmo.
O estudo acompanhou 4.282 adultos com uma idade média de 59 anos ao longo de cerca de 12 anos. Todos foram submetidos ao Sitting-Rising Test (SRT), que vai de 0 a 10 pontos (5 para sentar + 5 para levantar), baseado em quantos apoios você precisa para sentar e levantar do chão.
E o achado é direto ao ponto:
A mortalidade foi progressivamente maior nos grupos com piores pontuações:
42,1% no grupo com SRT entre 0–4
20,4% com 4,5–7,5
11,1% com 8
7,0% com 8,5–9,5
E apenas 3,7% entre os que tiraram nota 10!
Mesmo após ajustar para idade, sexo, IMC e comorbidades, a chance de morrer por qualquer causa foi quase 4x maior (HR 3,84) no grupo com pior desempenho. E o risco de morte cardiovascular chegou a ser 6x maior (HR 6,05) em quem mal conseguia levantar do chão.
Além disso, cada ponto a menos no SRT aumentou o risco de morte natural em 33% e cardiovascular em 31%.
Em outras palavras: se você precisa das duas mãos, joelhos, uma cadeira e talvez uma ajudinha pra levantar do chão… é melhor levar isso a sério.
Por que isso importa?
O SRT é simples, rápido, barato e reflete um combo de força muscular, equilíbrio, flexibilidade e coordenação, tudo que começa a se perder silenciosamente com a idade. E agora sabemos que esse combo é um forte preditor de sobrevida.
Você não precisa de laboratório, nem esteira, nem VO₂. Em menos de um minuto, dá pra avaliar o risco de um paciente com algo tão simples quanto sentar e levantar do chão. Pode parecer brincadeira, mas é ciência séria com potencial de mudar check-ups, consultas de rotina e até intervenções precoces.
Ticagrelor: um bilhão de dólares, uma avalanche de dúvidas
Caiu na Mídia
Depois de mais de uma década no topo das recomendações para SCA, o ticagrelor (Brilinta/Brilique) está sob fogo cruzado.
Prestes a perder a patente, o BMJ acaba de publicar uma investigação explosiva sobre os estudos que sustentaram sua aprovação. E o que veio à tona é, no mínimo, preocupante.
O jornal revisou dois estudos-chave patrocinados pela AstraZeneca (ONSET/OFFSET e RESPOND), que embasaram a ideia de que o ticagrelor inibe plaquetas mais rápido e de forma mais potente que o clopidogrel.
Encontrou inúmeras inconsistências: endpoints primários relatados de forma incorreta, dados ausentes em registros da FDA, autores que negam ter participado do estudo e leituras de laboratório que nunca entraram nos bancos de dados oficiais.
Além disso, há sinais de manipulação: um resultado estatisticamente não significativo foi publicado como significativo com base em uma mudança de endpoint nunca reportada.
Em outro ponto, dados "implausíveis" foram mascarados com ajustes não divulgados.
O próprio FDA já havia sinalizado que, no PLATO (estudo pivotal), o ticagrelor não mostrou vantagem clínica precoce onde se esperava ou seja, nos pacientes que iam para angioplastia primária logo após o infarto.
O cenário que se desenha é grave: dados frágeis, falta de transparência e possível má conduta científica em um dos fármacos mais prescritos na cardiologia moderna. A AstraZeneca nega qualquer irregularidade, e boa parte dos investigadores citados na publicação não respondeu ou se recusou a comentar.
Se confirmadas, as acusações representam um dos maiores escândalos científicos envolvendo um blockbuster cardiovascular. Ainda é cedo para saber o impacto prático, mas fica clara a urgência de reavaliarmos criticamente as evidências que embasam nossas condutas, especialmente diante de alternativas mais baratas e mais bem estabelecidas.
Fique por dentro
🧠 Coração e mente envelhecem juntos, e interagem mais do que se imagina. Artigo de revisão publicado no JACC mostra como a doença cardiovascular e o declínio cognitivo caminham lado a lado nos idosos, alimentando-se mutuamente por mecanismos como hipertensão, hipoperfusão cerebral, inflamação e efeitos adversos de medicamentos.
⚠️ Iniciar anticoagulação com DOAC até 4 dias após AVC isquêmico em pacientes com fibrilação atrial reduz recorrência de AVC sem aumentar sangramentos. A meta-análise CATALYST mostrou que começar o anticoagulante oral direto precocemente foi mais eficaz do que atrasar (≥5 dias), diminuindo eventos isquêmicos sem maior risco de hemorragia intracraniana.
🫀 Esse é para quem leu a Prime de doença valvar múltipla: artigo de revisão, fruto da colaboração entre o JACC e o Heart Valve Collaboratory, resume os principais achados do manejo conjunto da estenose aórtica com a insuficiência mitral.
🤖 PanEcho: a IA que promete agilizar e padronizar a ecocardiografia. Este estudo validou um sistema de inteligência artificial treinado com mais de 1 milhão de vídeos para interpretar ecocardiogramas transtorácicos de forma automatizada. O PanEcho obteve alta acurácia tanto em diagnósticos (AUC mediana de 0,91) quanto em medições quantitativas, como fração de ejeção do VE (erro absoluto de 4,2% a 4,5%). O desempenho se manteve robusto em exames completos, protocolos abreviados e até em aquisições de ultrassom à beira-leito.
🚴🏽 Atletas de alto nível apresentam maior risco de FA a longo prazo em comparação à população geral. Estudo australiano avalia fatores relacionados à ocorrência de FA em ex-remadores.
⏳ Estudo de longo prazo que você quer? Estudo demonstra risco aumentado de AVC em pacientes com eventos adversos na gestação mantido após 46 anos de seguimento.
💬 Discussões do EHJ (adoramos)! Debate questiona a definição de obesidade pelo índice de massa corpórea: prós e contras são defendidos por autores distintos e renomados.
🩸 Trombose de prótese do lado esquerdo do coração: estudo mostra segurança e eficácia da trombólise lenta em comparação com cirurgia de urgência.
💊 O anticoagulante ideal? Estudo comprova que Abelacimab, inibidor do fator 11, confere menor risco de sangramento em relação a Rivaroxabana mesmo quando associados a um antiagregante plaquetário (dupla terapia).
📝 Novo algoritmo para avaliação da pressão diastólica 2 do ventrículo esquerdo: a tão famosa “Pd2 do VE”. Nova forma de avaliação promete ser mais precisa e diminuir resultados indefinidos.