Não há dúvidas de que o congresso da sociedade europeia de cardiologia (ESC), que aconteceu no último final de semana e se encerra hoje, em Amsterdam, é um dos eventos mais comentados no mundo cardiológico.
Lançamento de grandes diretrizes, os estudos mais importantes do ano e a presença dos maiores especialistas do mundo. Não é a toa o boom de tweets e posts em todas as redes sociais ao longo dos últimos dias.
A DozeNews não ia ficar para trás e trouxe as principais novidades para você.
Ben je klaar? (Do holandês, você está pronto?) rs
As novas Diretrizes
2023 ESC Guidelines
Os europeus trabalharam muito nesse último ano.
Foram 5 diretrizes novas, entre atualizações e diretrizes únicas, que movimentaram o começo do congresso.
Quem acompanhou nosso Instagram, fizemos duas postagens com as principais mudanças de cada uma e aqui vamos citá-las para vocês, com os links das diretrizes para um fácil acesso.
🚨 Diretriz de síndrome coronariana aguda: a “mais amada” está de volta e agora englobando Supra e Sem Supra em um documento só. Uma diretriz que merece ser lida por inteira - ou melhor, dissecada em um DozeCast.
🦠 Diretriz de endocardite: 8 anos após a última, a diretriz de endocardite está muito bem feita e esclarecendo dúvidas que surgiram com as evidências dos últimos anos (como a possibilidade de término de ATB por via oral).
❤️🩹 Atualização da diretriz de insuficiência cardíaca: mesmo com a diretriz recente em 2021, diversos estudos surgiram nesses últimos 2 anos e atualizaram o manejo da IC. Destaque para a Finerenona e suplementação de ferro EV que aumentaram seus graus de recomendação.
🧬 Diretriz de cardiomiopatias: sim, pela primeira vez estamos diante de uma diretriz exclusiva do tema. Excelente para estudo e consultas. Discute uma abordagem baseada nos diferentes fenótipos das cardiomiopatias: hipertróficas, dilatadas, arritmogênicas, restritivas…
🧁 Diretriz do manejo da doença cardiovascular no diabetes: atualizações do manejo desse perfil específico de pacientes, com destaque para a recomendação de uma nova calculadora de risco no paciente diabético - a SCORE2-Diabetes, clique aqui para conhecê-la.
E agora que você já baixou todas as diretrizes no seu celular, vamos para os famosos “Late Breaking Clinical Trials”, com a nossa clássica divisão pelos dias do congresso.
Dia 1
🔥ON FIRE!!
Foi assim que começou o primeiro dia de congresso.
Além da publicação das principais diretrizes, no primeiro dia foram apresentados alguns dos estudos mais aguardados, incluindo:
💉 STEP-HFEpF: estudou se o controle da obesidade por meio do uso da semaglutida (os famosos Ozempic, Rybelsus etc) ajudaria no tratamento da IC FEP.
Foram 529 pacientes com IMC ≥ 30 kg/m² e sintomas de IC FEP (FEVE ≥ 45%), randomizados para receber 2,4 mg/dia de semaglutida vs placebo.
Após um seguimento de 52 semanas, conforme esperado, houve mudança significativa no peso nos pacientes em uso do análogo da GLP1, mas também o principal: melhora dos sintomas da IC.
Uma pequena limitação do estudo foi o pequeno número de pacientes em uso de inibidores da SGLT2 (apenas 3,6%), atualmente classe de drogas com nível de recomendação I no tratamento da IC FEP.
Sem dúvidas um estudo para vir forte nas próximas diretrizes, demonstrando a importância da redução do peso em pacientes obesos com IC FEP, por meio dos agonistas da GLP1.
💊 NOAH-AFNET: estudo bastante esperado pelo pessoal da arritmia clínica, que avaliou o benefício da anticoagulação com edoxabana em pacientes sem FA, mas com alta taxa de extrassístoles supraventriculares.
2536 pacientes ≥ 65 anos, com pelo menos 1 fator de risco para AVC + episódios de taquicardia atrial (≥ 6 minutos e ≥ 170 bpm), randomizados para receber edoxabana vs placebo.
O desfecho primário foi composto por eventos tromboembólicos ou morte cardiovascular; e ainda avaliaram um desfecho de segurança para sangramentos maiores.
Após o seguimento médio de 21 meses, o uso da edoxabana não demonstrou de forma significativa redução do desfecho primário (HR 0,81; 95% CI 0,60 - 1,08), à custa de aumento de episódios de sangramento com o uso da anticoagulante (HR 1,31; 95% CI 1,02 - 1,67).
Dessa forma, mesmo em pacientes idosos com alta taxa de arritmias supraventriculares e risco para AVC, não houve benefício em “prever” a evolução para FA e assim “adiantar” o início da anticoagulação.
🔪 COP-AF: avaliou se o uso da colchicina no perioperatório de cirurgias não-cardíacas reduziria a incidência de FA ou infarto nesse contexto.
Foram incluídos 3209 pacientes ≥ 55 anos submetidos a cirurgia torácica não cardíaca, randomizados para receber colchicina 0,5 mg 2x/dia ou placebo 4 horas antes da cirurgia e por 10 dias após.
O desfecho composto avaliado foi FA ou injúria miocárdica pós-operatória.
Após um seguimento de 14 dias, não houve diferença entre os grupos para nenhum dos desfechos primários (FA: HR 0,85; 95% CI 0,65 - 1,1; injúria miocárdica HR 0,89; 95% IC: 0,76 - 1,05). E, ainda, levou a um aumento de diarreia não-infecciosa no grupo em uso da medicação.
Ainda não será dessa vez que a colchicina será incluída na prescrição perioperatória de cirurgias torácicas.
Menção honrosa, ainda, aos estudos BIOFLOW-DAPT (demonstrou não-inferioridade no uso de stents biodegradáveis vs stents farmacológicos de polímero durável em pacientes com alto risco de sangramento em uso de DAPT por 1 mês) e o LODESTAR (não houve diferença no uso da rosuvastatina ou atorvastatina em pacientes com DAC estável).
Dia 2
Um susto para depois o respirar aliviado da plateia. E assim começou o segundo dia do congresso.
🫀 A notícia decepcionante foi o estudo HEART-FID, que não atingiu seu objetivo primário de demonstrar benefício na reposição venosa de ferro para pacientes com IC.
Logo após, foi apresentada uma metanálise contemplando 4.501 pacientes do CONFIRM-HF, AFFIRM-AHF e da HEART-FID, que evidenciou benefício da carboximaltose férrica intravenosa em pacientes com IC e anemia ferropriva para redução de hospitalização e morte cardiovascular, quando comparada com placebo (RR 0,86; IC 95% 0,75-0,98).
⚡ A IC seguiu com tudo, e nesse mesmo dia foi apresentado o BUDAPEST-CRT Upgrade Study:
A população do estudo foi composta por pacientes com sintomas de IC, FEVE ≤ 35%, complexo QRS ≥ 150 ms e alta carga de estimulação do VD (≥ 20%), que haviam recebido um MP ou CDI há pelo menos seis meses e estavam sendo tratados com terapia médica orientada pelas diretrizes.
A pergunta a ser respondida era: será que o upgrade para terapia de ressincronização cardíaca com desfibrilador (TRC-D) poderia reduzir morbimortalidade e melhorar o remodelamento reverso do VE?
Após 12,4 meses de seguimento médio, o composto de hospitalização por IC, mortalidade por todas as causas ou redução < 15% do volume sistólico final do VE ocorreu em 32,4% no braço TRC-D e em 78,9% no braço CDI, evidenciando benefício da estratégia de upgrade.
🇨🇳 A IC também esteve em alta com a turma do oriente! O qiliqiangxin da medicina tradicional chinesa reduziu a hospitalização por IC e morte cardiovascular em pacientes com ICFEr, de acordo com os resultados do QUEST Trial.
Um total de 3.110 pacientes foram incluídos na análise (1.555 randomizados para qiliqiangxin e 1.555 para placebo). Durante um acompanhamento médio de 18,3 meses, o desfecho primário ocorreu em 25% no grupo qiliqiangxin e em 30% no grupo placebo. Será o início da invasão chinesa também no tratamento ocidental da IC?
Nesse dia, ainda tiveram alguns estudos que valem a pena ser citados, como:
FIRE - em pacientes idosos (≥ 75 anos) com IAM, o estudo da fisiologia das demais lesões (indo além da lesão culpada) foi benéfico em relação a redução de desfechos cardiovasculares.
STOP-DAPT 3 - estratégia de monoterapia com prasugrel em baixas doses (3,75 mg/dia) não foi superior à DAPT em população coreana com alto risco de sangramento após angioplastia com stent farmacológico; e ainda com uma tendência a maior risco de trombose de stent.
ECLS-SHOCK - suporte extracorpóreo de vida precoce não foi capaz de melhorar a sobrevida no grave grupo de pacientes com choque cardiogênico após IAM.
Dia 3
O congresso ainda tinha muito gás em seu terceiro dia, agradando aos amantes da eletrofisiologia invasiva, hemodinâmica, miocardiopatias e emergências (uow… realmente diferenciado).
E quem sai ganhando é você, clínico, que deve saber de tudo (rindo mas é de nervoso rs):
😵💫 ARREST Trial: na PCR extrahospitalar leve para a emergência mais próxima! Esse estudo avaliou o impacto do referenciamento de pacientes com PCR extrahospitalar para centros de cardiológicos de referência em comparação com o serviço de emergência mais próximo.
Estudo: aberto, prospectivo, randomizado
População: 862 pacientes com PCR extrahospitalar
Resultados: sem diferença de mortalidade em 30 dias (RR 1,0, CI 95% 0,9-1,11, p=0,96).
É claro que o cenário europeu é muito diferente do nosso, sendo este um trabalho de difícil generalização e aplicação no nosso Brasil.
🏰 CASTLE-HTx Trial: indique ablação de FA em pacientes com IC avançada. A dúvida quanto a indicação de ablação em pacientes elegíveis para transplante parece ser sanada após o estudo.
Avaliação do benefício da realização de ablação de FA em pacientes com IC em elegíveis para Tx em Classe funcional II-IV
Desfecho analisado: morte e necessidade de dispositivo de assistência ventricular.
Randomização de 194 pacientes (1:1) - ablação FA vs tratamento clínico otimizado
Resultados:
Menor ocorrência de morte, transplante de urgência ou implantação de dispositivo de assistência ventricular.
❗Atenção: o estudo foi interrompido após 1 ano devido a eficácia (isso não é comum de se ver! Muito menos um estudo com poucos pacientes e com redução de desfechos “duros”. Bravo!)
⭐ MULTISTARS AMI Trial: ainda não sabemos o tempo perfeito para a revascularização completa percutânea.
(Será que esse estudo teve esse nome por conjugar muitos hemodinamicistas? rsrs)
Foi um estudo prospectivo e randomizado que incluiu pacientes com IAMcSST e DAC multiarterial estáveis ao final da angioplastia da lesão culpada, randomizados para revascularização completa no procedimento index ou em 19-45 dias após tratamento da lesão culpada.
Resultados:
Menor ocorrência de morte, IAM não fatal, revascularização guiada por isquemia não planejada ou hospitalização por IC: 8,5% vs 16,3% (HR 0,52, 95% IC 0,38-0,72, com p < 0,001 para não inferioridade e p < 0,001 para superioridade)
Conclusão: revascularização imediata no procedimento index mostrou-se não inferior aos procedimentos estadiados em até 45 dias.
Apesar deste estudo ter sido desenhado para determinação da não-inferioridade da revascularização completa no procedimento index em relação a estratégia estadiada, flerta com a superioridade da primeira.
👀 OCT vs IVUS vs Angiography Guidance: angioplastias guiadas por imagem intracoronária, seja OCT ou IVUS, são o padrão a ser seguido. Apesar destes métodos ainda serem pouco utilizados na Europa e EUA, mais uma evidência robusta surge a favor da imagem.
Foi uma metanálise englobando 20 trials e 12.428 pacientes com o obejtivo de avaliar o impacto da imagem intravascular nas angioplastias coronarianas
O seguimento foi de 6 meses e 5 anos, com um desfecho primário composto por morte cardíaca, IAM relacionado ao vaso tratado e nova revascularização da lesão tratada.
Resultados:
Redução do desfecho composto principal em 31%
Redução de todos os desfechos secundários:
Morte cardíaca em 46%
IAM do vaso tratado em 20%
Revascularização do vaso tratado em 29%
Trombose de stent em 52%
Por curiosidade, o Japão é o país em que os métodos de imagem são mais difundidos, englobando cerca de 80 a 90% de todas as angioplastias realizadas no país. Número muito superior se comparados aos serviços americanos e europeus (entre 20 e 30%).
E mais:
ATTRibuite-CM: nova medicação para tratamento da amiloidose ATTR com resultados satisfatórios - Acoramidis.
ADVENT Trial: ablação de FA por termodiluição mostra-se não-inferior e segura em relação a técnica por campo pulsado.
OCTIVUS Trial: OCT mostra-se não inferior ao IVUS para guiar angioplastias em diversos cenários.
OCTOBER Trial: angioplastia guiada por OCT reduziu MACE no tratamento de bifurcações complexas em comparação com procedimento guiado por angiografia.
ILUMIEN IV: angioplastia guiada com OCT apresenta-se mais segura (reduziu trombose de stent) e garantiu maior área luminal do stent, porém não diminuiu a falha do tratamento.
Saído do forno… O dia 4!
Ainda dá tempo de citarmos os principais estudos apresentados até o momento no último dia do congresso:
DANPACE II: minimizar o pace atrial em pacientes com doença do nó sinusal não reduziu o risco de evolução com FA.
ARAMIS: apesar de segura, o uso da Anakinra (um antagonista da IL-1) não reduziu eventos em pacientes com miocardite aguda.
OPT-BIRISK: a extensão da monoterapia com clopidogrel além de 12 meses após angioplastia em pacientes com SCA e alto risco, reduziu eventos isquêmicos e sangramento.