Entre os clássicos e as novas fronteiras
Dos desafios da IC FER de etiologia isquêmica, ao posicionamento da OMS sobre os aGLP1, a novos conhecimentos da genética mitocondrial
Double Trouble
Scientific Statemente (JACC)
Sabe aquele paciente “egoísta”, que quer todas as comorbidades só pra ele? Aquele que faz você sambar miudinho entre três diretrizes diferentes, sintomas misturados e decisões sem ensaios clínicos para guiá-lo? Pois é…
Se alguns casos apareceram na sua cabeça, a AHA pensou exatamente nesses pacientes ao lançar o novo Position Statement sobre manejo da doença coronariana em quem já tem insuficiência cardíaca.
E já começamos com um dado que assusta: entre 6% e 32% dos pacientes >45 anos que infartam evoluem para IC, e 60–70% dos pacientes com IC com fração de ejeção reduzida (IC FER) têm DAC como etiologia.
A maioria só descobre a DAC depois que o ventrículo já sofreu. Isso tudo está muito bem detalhado no documento, que reforça a intersecção intensa entre IC e isquemia ao longo da vida do paciente.
Vamos ver os principais pontos do documento:
Como investigar?
O artigo reforça: testes funcionais e anatômicos podem ser complementares, seja pela angioTC com FFR derivado, seja pela RM com estresse ou pelo bom e velho cateterismo com FFR/iFR.
Mas aqui vem o plot twist:
Não há evidência de que pesquisa de isquemia de rotina melhore prognóstico em miocardiopatia isquêmica.
As recomendações internacionais seguem heterogêneas e os estudos falham em demonstrar que quantificar isquemia ajuda a selecionar quem mais se beneficia de revascularização.
O mesmo vale para viabilidade, cujo uso rotineiro não é recomendado — ainda que possa ajudar em casos selecionados com dúvida real de benefício.
No final do dia, o recado é direto: individualização total. Quanto maior o impacto anatômico e funcional da DAC, maior a chance de repercussão no prognóstico — mas sem automatismos.
Terapia medicamentosa: ainda é a rainha
Para IC FER, nada novo, mas o texto reforça com todas as letras:
use tudo o que funciona e na maior dose tolerada:
betabloqueador específico para IC
ARNI (preferível) ou IECA/BRA
antagonista de receptor mineralocorticoide (MRA)
inibidor de SGLT2
Para IC com FE preservada (IC FEP):
iSGLT2 é a estrela
MRA e BRA/IECA podem entrar em cenários selecionados
E a revascularização? Quem realmente ganha com isso?
A diretriz é claríssima, e bastante alinhada aos estudos:
Quando operar (CABG)?
Pacientes com IC FER, FEVE < 35%, diabetes ou DAC extensa:
→ CABG melhora desfechos e reduz mortalidade em longo prazo.
(STICH, STICHES e análises detalhadas reforçam isso em múltiplos trechos.)
E o stent?
quando a cirurgia é contraindicada
ou quando o risco cirúrgico é proibitivo
Porque, até agora… a angioplastia não mostrou benefício prognóstico em IC isquêmica (vide REVIVED-BCIS2), porém melhora sintoma em curto prazo.
📝 O recado final: otimize GDMT antes de pensar em revascularizar, quando possível. Para muitos pacientes estáveis, 2–3 meses de tratamento podem melhorar risco cirúrgico e até reclassificar a necessidade de intervenção.
GLP-1, obesidade e uma virada histórica: a OMS entra em cena
Artigo de revisão (JAMA)
Silêncio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) está descobrindo os agonistas da GLP1 rs.
A OMS acaba de publicar, no JAMA, a primeira diretriz sobre o uso de terapias com GLP-1 para o tratamento da obesidade em adultos.
É oficial: a obesidade foi definitivamente elevada ao status de doença crônica, recidivante e que exige cuidado ao longo da vida.
Meio atrasado, né?! Aqui no Brasil o pessoal já anda arrumando até Mounjaro do Paraguai rs.
“Atrasada” ou não, o fato é que essa diretriz da OMS muda tudo. Primeiro, entenda o tamanho do problema:
Mais de 1 bilhão de pessoas vivem com obesidade no mundo.
Em 2024, foram 3,7 milhões de mortes relacionadas à obesidade.
O custo global estimado pode alcançar US$ 3 trilhões por ano até 2030.
Em países com prevalência acima de 30%, a obesidade pode consumir até 18% do orçamento em saúde.
Estamos falando de uma das maiores crises sanitárias da história moderna. E é por isso que a diretriz estabelece dois pilares centrais:
GLP-1 como tratamento de longo prazo:
A OMS recomenda que agonistas de GLP-1 possam ser utilizados de forma contínua (≥6 meses) no tratamento da obesidade em adultos com grau de recomendação condicional e evidência moderada. Entram aqui: semaglutida, liraglutida, tirzepatida e congêneres.
Associação obrigatória com terapia comportamental intensiva:
O medicamento não substitui mudança de estilo de vida. A OMS recomenda que o tratamento seja associado a terapia comportamental estruturada, com:
Metas de atividade física;
Restrição energética;
Aconselhamento semanal;
Monitoramento contínuo.
Ou seja, estamos falando de medidas que afetam não apenas o emagrecimento estético, e sim a modulação sistêmica de risco cardiometabólico.
No entanto, ainda sobra um porém: a recomendação é “condicional”.
E a justificativa para isso é que ainda existem desafios reais:
Custo extremamente elevado
Capacidade global de produção insuficiente
Sistemas de saúde despreparados
Risco de aprofundar desigualdades em saúde
Dados limitados de segurança e eficácia em muito longo prazo
Segundo a própria OMS, mesmo no melhor cenário, a produção global hoje não cobriria nem 10% das pessoas com obesidade no planeta.
Por fim, a publicação da diretriz simboliza uma virada histórica: “A obesidade deixou oficialmente de ser tratada como falha individual de caráter para ser reconhecida como uma doença complexa, prevenível e tratável.”
Do ponto de vista da cardiologia, isso consolida algo que já vínhamos sentindo na prática: aGLP-1 não é mais uma medicação metabólica. É uma ferramenta cardiovascular de primeira linha no cuidado do paciente complexo.
❗️Mas com um aviso importante: medicação sem reorganização de estilo de vida é só anestesia metabólica temporária.
Agora nós fomos longe demais…
Artigo de Revisão (Circulation)
Se existe um tema que parece complexo demais para entrar no consultório do cardiologista, esse tema é genética mitocondrial.
Mas cardiologia não cansa de nos surpreender, não é mesmo?!
A AHA acaba de lançar um Scientific Statement mostrando que entender um pouco mais dessa área pode ser exatamente o que falta para decifrar certas cardiomiopatias, arritmias “misteriosas” e até fatores de risco que sempre pareceram “inexplicáveis”.
O coração consome cerca de 6 g de ATP por dia, quase todo produzido pela fosforilação oxidativa, e boa parte dos componentes dessas máquinas energéticas é codificada pelo DNA mitocondrial (mtDNA). Não é surpresa que variantes genéticas que afetam essas vias causem remodelamento, disfunção e até influenciem o envelhecimento cardiovascular.
Além disso, a mitocôndria tem uma peculiaridade: cada célula possui múltiplas cópias de mtDNA, e elas podem carregar variantes diferentes: isso se chama heteroplasmia.
Até 30% dos pacientes com doenças mitocondriais confirmadas geneticamente apresentam manifestações cardiovasculares, sobretudo arritmias e cardiomiopatias. E o mais desafiador: o fenótipo é altamente variável e pode até ser isolado ao coração.
O diagnóstico é complicado porque:
diferentes variantes podem aparecer tanto no mtDNA quanto no DNA nuclear;
a herança é não mendeliana (heteroplasmia, gargalo mitocondrial, limiares fenotípicos);
o mtDNA é extremamente polimórfico.
A AHA reforça que, diante de suspeita clínica, testes amplos (como exoma ou genoma inteiro com análise de mtDNA) são preferíveis a painéis restritos.
Estudos populacionais já identificaram variantes específicas do mtDNA ligadas a fatores de risco cardiometabólicos e a doença cardiovascular, mas os bancos de dados ainda são limitados e muitas análises usam poucos marcadores.
O futuro descrito pela AHA é empolgante: graças aos avanços em sequenciamento, modelagem celular e especialmente em edição genética mitocondrial, abre-se a possibilidade real de terapias direcionadas para modular heteroplasmia e tratar cardiomiopatias de base mitocondrial.
A combinação desses métodos com cardiomiócitos derivados de células-tronco promete decifrar como o mtDNA influencia o risco e o remodelamento cardíaco, inaugurando uma nova fase da cardiologia de precisão.
Golpe no coração
Caiu na Mídia
A morte de Ronald Montenegro após a queda da barra de supino em Olinda reacendeu o alerta sobre o perigo real dos impactos torácicos.
O vídeo, que circulou nas redes sociais e nas principais páginas de notícias nos últimos dias, mostra um padrão clássico: o equipamento atinge o centro do tórax, ele ainda consegue se levantar e, poucos segundos depois, desaba.
Esse intervalo curto sugere dois mecanismos possíveis:
O mais provável é o trauma estrutural, com fratura de esterno e ruptura do coração ou de grandes vasos, com sangramento imediato no pericárdio e tamponamento cardíaco fulminante, um cenário em que mesmo socorro rápido raramente reverte o desfecho.
O segundo mecanismo, menos provável em adultos, mas sempre lembrado, é o commotio cordis, uma arritmia letal disparada por um impacto aparentemente banal no tórax, desde que ele ocorra em uma janela crítica de milissegundos da onda T.
Nesse fenômeno, o coração estruturalmente normal entra em fibrilação ventricular sem qualquer lesão interna, e 20% das vítimas, assim como Ronald, ainda conseguem se mover por alguns segundos antes de colapsar.
Acidente semelhante foi notícia em todo o mundo quando, em 2023, no qual Damar Hamlin, jogador da NFL, sofreu um evento cardíaco após um tackle, num episódio amplamente interpretado como commotio cordis. Ele sobreviveu graças ao atendimento com RCP e desfibrilação imediatos.
Ambos os casos reforçam a necessidade de práticas esportivas realmente seguras, seja dentro das academias, no nosso dia a dia, com aparelhos adequados, supervisão, profissionais treinados e desfibriladores disponíveis; ou em grandes eventos esportivos internacionais, onde equipes de pronto-atendimento e dispositivos de reanimação cardiovascular precisam estar imediatamente acessíveis.
Resposta do desafio 01/12
Sim! Estamos diante de um caso de origem anômala de coronárias identificado na cineangiocoronariografia, no qual o TCE origina-se de seio coronário direito.
O próximo passo aqui é a realização de uma angiotomografia de coronárias para avaliação do trajeto da artéria, em especial se é interarterial (de maior risco), conforme a figura a seguir:
Temos uma DozePrime sobre esse tema, na qual detalhamos os aspectos do diagnóstico, estratificação de risco e tratamento.
Fique por dentro
💊 MRAs: mais que tratamento, uma estratégia de prevenção! Revisão propõe ampliar o uso de antagonistas do receptor mineralocorticoide (MRAs) já na hipertensão, antes mesmo da insuficiência cardíaca. O motivo? Eles atuam em mecanismos ocultos como hiperaldosteronismo e disfunção do cortisol, podendo prevenir o desenvolvimento da IC.
😈 Vilões em diversas fases da vida. Artigo do EHJ destaca fatores de risco sexo-específicos da infância ao período pós-menopausa na mulher.
📐 Tem aorta dilatada? O índice área/altura pode ser o mais confiável! Estudo com mais de 57 mil pacientes do UK Biobank e PMBB comparou formas de indexar o tamanho da aorta ascendente ao corpo e concluiu que apenas a relação área/altura corrige adequadamente o efeito do tamanho corporal.
🫀 IC e magnésio! Estudo demonstra benefício da reposição oral de magnésio em pacientes com IC e hipomagnesemia. Houve redução significativa de óbito e hospitalizações.
🧬 Risco molecular! Estudo apresenta relação de fosfolipídeos oxidados e Lp(a) com desfechos em pacientes após síndrome coronária aguda e o possível impacto do Arilocumab neste cenário.
🏃🏽♀️ Cuidar do atleta master exige outro olhar! Revisão publicada no JACC, propõe um guia inédito para o uso de métodos de imagem cardiovascular nesse grupo, considerando as adaptações fisiológicas e os riscos particulares dos masters.
🍰 Diabéticos apresentam maior ocorrência de morte súbita que a população em geral. Estudo com base no registro DANISH demonstra redução da expectativa de vida em 14,2 e 7,9 anos em DM1 e DM2 respectivamente.








