Infarto agudo do miocárdio: muito além do Supra de ST
A hora e a vez da Oclusão Coronariana Aguda (OCA)
Autores:
Diandro Marinho Mota: Cardiologista do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; Diretor Médico da Neomed Healthtech. Doutor em Medicina/Tecnologia e Intervenção em Cardiologia pela USP/IDPC.
José Nunes de Alencar: Cardiologista do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia; autor do Tratado de ECG e do Manual de MBE. Fellow da International Society for Holter and Noninvasive Electrocardiology (ISHNE).
Stephen W. Smith: Professor de Medicina de Emergência, University of Minnesota. Co-criador do paradigma OMI-NOMI e criador do Dr. Smith’s ECG Blog.
Na medicina precisamos estar sempre evoluindo e nos questionando se certos conceitos ainda fazem sentido.
A principal urgência da cardiologia não poderia ficar de fora dessa reflexão: a forma como identificamos e classificamos o infarto agudo do miocárdio tem impacto direto nas decisões de tratamento e nos desfechos dos pacientes.
O modelo tradicional, centrado na presença ou ausência de supra de ST, mostra-se cada vez mais impreciso ao diagnosticar oclusões coronarianas agudas.
Nesta edição da DozeNews Prime, vamos questionar o modelo atual de classificação de infarto do miocárdio, focando nas limitações do paradigma IAMCSST (Infarto Agudo do Miocárdio com Supra de ST) e IAMSSST (Infarto Agudo do Miocárdio sem Supra de ST).
Vamos fazer um passeio pela nova proposta de nomenclatura, que melhor representa a fisiopatologia do infarto: Oclusão Coronariana Aguda (OCA) x Não Oclusão Coronariana Aguda (NOCA).
📚 Para tal, teremos como referências os estudos recentemente publicados no JACC: Advances e nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, que foram capitaneados pelo proponente original desta tese, Dr. Stephen Smith, e pelo parceiro de jornada Dr. José de Alencar, que gentilmente topou colaborar com essa edição da nossa Prime como coautor ao lado do Dr. Diandro Mota!
Pela relevância da discussão, disponibilizaremos esta edição a todos os Dozers, e pedimos que vocês encaminhem a todos os colegas cardiologistas para que também possam adentrar nesta reflexão.
Fazemos o convite para que acessem o nosso site e conheçam melhor o conteúdo da DozeNews Prime!
A evolução da classificação do infarto
Você já parou para pensar como chegamos ao paradigma IAMCSST-IAMSSST? Não foi sempre assim. Antes dos anos 2000, o infarto era classificado como “com onda Q” e “sem onda Q” — uma era em que os cardiologistas ainda buscavam maneiras de entender as lesões com um olhar limitado, antes mesmo das terapias de reperfusão ganharem força.
Mas com a chegada de trombolíticos, surgiu a necessidade de ser mais direto ao ponto: quem precisa de intervenção urgente?
E foi aí que a classificação IAMCSST-IAMSSST ganhou vida. O supra de ST passou a ser nosso “sinal de emergência,” indicando que a artéria bloqueada precisava de ação rápida. Esse modelo trouxe muitos avanços, permitindo intervenções decisivas e melhorando prognósticos.
Contudo, a realidade das SCAs começou a mostrar que o supra de ST, por si só, não dava conta da complexidade das oclusões coronarianas. Muitas vezes, aquele paciente com quadro sério de oclusão "passava batido" pelo critério do supra de ST — aliás, hoje sabemos que mais de 50% das oclusões coronarianas agudas não mostram o supra de ST.
Uma metanálise realizada pelo grupo de pesquisa do Dr. Alencar encontrou apenas 3 estudos que verificaram a precisão diagnóstica dos atuais critérios de IAMCSST para o achado subjacente de OCA, e a sensibilidade combinada foi de apenas 43,6%.
Essa imprecisão se traduz em pacientes subdiagnosticados, que, na prática, ficam sem o tratamento otimizado de que realmente precisam.
E é nesse contexto que entra a nova proposta de classificar as SCAs como OCA (Oclusão Coronariana Aguda) ou NOCA (Ausência de Oclusão Coronariana Aguda), baseando-se na fisiopatologia e nas características anatômicas. Deixamos de focar apenas no ECG como “filtro inicial” e passamos a observar o que de fato está acontecendo nas artérias.
Por que o Supra de ST não é exato?
Vamos direto ao ponto: o supra de ST, apesar de ser o gold standard há muito tempo, tem limitações sérias para identificar oclusões coronarianas agudas.
Parece difícil de acreditar, mas é verdade.
E a ciência tem nos mostrado os motivos dessa imprecisão, trazendo à tona o fato de que o supra de ST nem sempre representa a realidade da artéria que está bloqueada.
Primeiro, o supra de ST é um sinal eletrocardiográfico que depende de onde e como a oclusão está acontecendo.
O que isso quer dizer? Em alguns casos, como nas oclusões de ramos específicos, especialmente da artéria circunflexa, o supra de ST pode simplesmente não aparecer.
É como se estivéssemos esperando um alarme soar, mas ele falha justamente nos momentos mais críticos. Em outras palavras, há um descompasso entre o que vemos no ECG e o que está realmente acontecendo nas coronárias.
Segundo, o supra de ST não distingue bem a gravidade da oclusão em si: há pacientes com oclusão total que não mostram o supra de ST, enquanto outros com obstruções parciais exibem o sinal.
Isso gera uma incerteza que, na prática, compromete a precisão diagnóstica e, muitas vezes, o tempo de resposta. Ou seja, ficamos reféns de um critério que não tem sensibilidade suficiente para captar uma grande parte das oclusões.
Essas limitações explicam por que o paradigma IAMCSST-IAMSSST precisa ser reavaliado.
Passar a adotar uma visão que vá além do supra de ST pode nos permitir diagnosticar com mais precisão quem realmente precisa de uma intervenção urgente.
O alerta vermelho das estatísticas
Como destacamos anteriormente, mais da metade das oclusões coronarianas agudas — sim, mais de 50% — não apresentam o supra de ST. Isso significa que, ao depender desse único critério, estamos deixando passar uma enorme quantidade de infartos que, na prática, precisam de atenção imediata.
Para sermos mais específicos, estudos de angiografia revelam que muitos pacientes com SCAs e ECGs sem supra de ST têm uma artéria completamente ocluída.
E o que isso representa na vida real?
A chance de um diagnóstico e tratamento tardio, com consequências que poderiam ser evitadas.
É como olhar para a ponta do iceberg e ignorar o que está por baixo: só porque o ECG não grita “supra de ST” não quer dizer que o problema não está lá — pelo contrário, ele pode estar escondido, mas é igualmente grave.
Esses números reforçam a necessidade de migrarmos para uma abordagem que vá além do supra de ST. Classificar as SCAs como OCA e NOCA traz mais clareza sobre o que realmente está acontecendo com o paciente e nos permite agir de maneira mais eficaz. Afinal, tempo é miocárdio, e essa mudança de olhar pode fazer toda a diferença.
O ECG além do supra: outros sinais de oclusão coronariana aguda
Se o supra de ST não é suficiente, o que mais podemos observar no ECG para identificar uma oclusão coronariana aguda?
Felizmente, o ECG oferece outras pistas valiosas que, quando bem interpretadas, podem apontar para uma OCA, mesmo sem o supra de ST.
Alguns sinais que merecem destaque incluem:
Ondas T hiperagudas: aquelas ondas T simétricas e de base alargada, muitas vezes maiores que o complexo QRS (um verdadeiro “alerta vermelho” para quem entende o que está procurando).
O famoso sinal de "de Winter": um subtipo de onda T hiperaguda, caracterizado pela depressão do segmento ST seguida por uma onda T de base larga, alta e positiva, geralmente associada a oclusão da artéria descendente anterior.
Esse sinal, apesar de pouco frequente, não deve ser ignorado.
Padrão de Aslanger: o ST sobe na derivação III, acompanhado por uma depressão em derivadas laterais, sugerindo comprometimento da parede inferior, especialmente em situações de doença de múltiplos vasos.
Distorção terminal do QRS: uma perda da onda S e da onda J de V2 e V3, que pode indicar infarto da parede anterior.
O "supra sutil": menor que 1 mm, mais facilmente reconhecível quando há onda q naquela derivação ou qualquer monta de depressão recíproca de ST.
Qualquer monta de depressão de ST de V1 a V4, critérios de Sgarbossa modificados por Smith e o sinal da bandeira da África do Sul são outros sinais buscados neste novo paradigma.
Esses são apenas alguns exemplos de como o ECG vai além do supra de ST na identificação de oclusões coronarianas agudas. Conhecer esses sinais e incorporá-los ao diagnóstico pode fazer uma enorme diferença, ajudando a identificar pacientes que precisam de intervenção imediata, mesmo que o ECG clássico não esteja “gritando” por ajuda.
Nosso time sugere fortemente que você tenha conhecimento de cada padrão eletrocardiográfico registrado até o momento que apresenta elevada probabilidade de associação com OCA. Abaixo, apresentamos um resumo dos padrões descritos na publicação do JACC sobre o tema com a participação dos Drs. Smith, Aslanger e Alencar:
Abordagem atualizada para SCA: foco em OCA x NOCA
Diante de um paciente com suspeita de SCA, chegou a hora de mudar a maneira como analisamos os sinais e planejamos a resposta.
Com a nova classificação de OCA e NOCA, o foco passa a ser mais claro: identificar rapidamente os casos de OCA para uma intervenção imediata, enquanto manejamos os casos de NOCA com uma abordagem mais adequada e menos invasiva.
Aqui vai uma proposta prática para essa nova abordagem:
ECG imediato e avaliação completa: a primeira linha de ação permanece o ECG. Mas agora, além de procurar pelo supra de ST, analisamos detalhadamente outros sinais de OCA (descritos acima). Qualquer um desses achados pode ser decisivo para suspeitar de uma oclusão ativa.
ECGs seriados: em muitos casos, as mudanças no ECG aparecem com o tempo. Assim, mesmo que o primeiro ECG não evidencie sinais óbvios de OCA, repetições frequentes podem revelar alterações dinâmicas que indicam isquemia.
Lembre-se: a evolução do quadro pode ser a chave para o diagnóstico.
Análise clínica completa e exames complementares: além do ECG, o ecocardiograma pode identificar anormalidades na motilidade da parede, sugerindo uma oclusão, mesmo que o ECG não seja conclusivo. Mas, frequentemente, o supra nunca aparece, então tenha cuidado.
Reperfusão rápida para casos de OCA: identificou OCA? Hora de agir. O princípio “tempo é miocárdio” nunca foi tão verdadeiro. Para esses pacientes, qualquer atraso na terapia de reperfusão — seja angioplastia ou fibrinólise — pode impactar significativamente o desfecho.
Monitoramento e abordagem personalizada para NOCA: para os pacientes classificados como NOCA, a estratégia pode ser menos agressiva, com monitoramento cuidadoso e uma avaliação mais criteriosa de risco. Isso permite que o tratamento seja ajustado de forma personalizada, evitando intervenções desnecessárias sem comprometer a segurança do paciente.
Com essa abordagem, o cuidado se torna mais alinhado com a real fisiopatologia do paciente, garantindo que as decisões clínicas sejam orientadas por uma visão mais completa do quadro.
Menos “padrões rígidos” e mais flexibilidade para agir com precisão — esse é o futuro da cardiologia que estamos construindo.
O futuro: IA e o diagnóstico de OCA
Estamos em um momento empolgante na cardiologia, e o futuro promete ainda mais inovação. A inteligência artificial (IA) já está começando a transformar o diagnóstico de doenças cardiovasculares, e o potencial para melhorar a detecção de OCA é enorme.
Imagine um cenário onde algoritmos de IA analisam o ECG em segundos, identificando não apenas o supra de ST, mas também aqueles sinais menos evidentes — ondas T hiperagudas, padrão de "de Winter", e até padrões mais sutis, como a distorção terminal do QRS. A IA pode detectar essas alterações com precisão e consistência, auxiliando na tomada de decisão clínica de forma rápida e objetiva.
Alguns estudos já mostram que modelos de IA podem superar a interpretação humana em termos de sensibilidade para detectar oclusões coronarianas.
A aplicação de IA em tempo real, integrada aos sistemas de emergência, tem o potencial de diminuir o tempo porta-balão e melhorar os desfechos, especialmente em hospitais com menos especialistas. Para quem está na linha de frente, isso significa um suporte diagnóstico adicional que pode aumentar a segurança do paciente e agilizar a intervenção.
É claro que a incorporação dessa tecnologia exige ajustes e treinamento, mas, com o tempo, a IA pode se tornar uma aliada indispensável. No cenário ideal, os cardiologistas terão ao seu lado ferramentas de IA que não apenas detectam OCA com alta acurácia, mas também se adaptam e evoluem com base nos dados clínicos, permitindo uma personalização cada vez maior no manejo das SCAs.
Abaixo apresentamos um exemplo de aplicação real da IA na identificação de possível quadro de OCA, realizado de forma experimental (como pesquisa) na plataforma Queen of Hearts:
No exemplo apresentado, o paciente havia sido admitido na sala de emergência com dor torácica típica há 30 minutos.
O modelo de IA foi capaz de identificar alterações hiperagudas da onda T, sugerindo OCA com alta confiança.
Durante o estudo angiográfico, foi possível confirmar a presença de OCA relacionada à artéria coronária descendente anterior.
Importante reforçar que a ferramenta foi utilizada em ambiente de pesquisa, sem que seu resultado fosse interferir diretamente no manejo clínico do paciente, visto que o modelo não está liberado ainda para a livre utilização. Trata-se de uma cortesia cedida pelo time da Queen of Hearts para uso experimental por parte da equipe do Dr. Diandro, que atua também na área de IA na cardiologia.
O caminho está pavimentado para um futuro no qual a precisão diagnóstica é aprimorada, e as decisões são informadas por insights avançados de IA. E para nós, como profissionais de saúde, isso significa estar na vanguarda de uma era que combina ciência, tecnologia e humanização no cuidado ao paciente.
E assim, chegamos ao fim desta bela edição da Doze News Prime sobre a nova proposta de diagnóstico e classificação de infarto.
🎙 Se você quer se aprofundar ainda mais nesse tema, sugerimos ouvir e ver o DozeCast #123: A Imprecisão do Supra de ST, com a participação do Dr José de Alencar e da Dra Mariana De Marchi.