MINOCA, o que fazer?
Fluxograma para diagnóstico e investigação etiológica de MINOCA
Autor: Raphael Rossi (cardiologista e preceptor do setor de coronariopatias do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia)
Edição: Maria Júlia Souto (cardiologista e fellow de Imagem Cardiovascular pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia)
“Paciente do leito 06 deu entrada com dor torácica, apresentou curva de troponina positiva, submetido ao CATE ontem com coronárias normais, programação de alta hoje...”
Borboletas no estômago, se controlem!
Felizmente, o maior entendimento contemporâneo sobre o infarto miocárdico sem lesões coronarianas obstrutivas (MINOCA) tem tornado esse tipo de conduta cada vez menos comum na prática clínica.
A Prime de hoje veio para discutir todas as alternativas que temos na investigação de um cenário como esse.
Epidemiologia
“Ah, mas MINOCA é igual cabeça de bacalhau, nunca ninguém viu…”
Vá nesse pensamento que você vai quebrar a cara no próximo plantão rs.
Pasupathy et al. publicaram uma metanálise com 28 estudos que demonstrou que a prevalência da nossa síndrome em pauta é de pelo menos 6% dentre os eventos isquêmicos agudos (em valores absolutos, isso é muita coisa, ok meus amigos?).
“E isso mata?” É o que você deve estar pensando nesse momento.
Em uma revisão com mais de 55 mil pacientes com suspeita de MINOCA, a taxa de eventos cardiovasculares maiores (MACE) foi de 9,6% e de morte por qualquer causa de 3,4%. Isso tudo em apenas 12 meses.
Já te convencemos que é para ficar preocupado se o seu paciente infartar e tiver coronárias normais no CATE; e que você precisa ler essa Prime para saber o que fazer.
Antes de ir para os finalmentes da nossa News, é imprescindível passar por algumas preliminares (alerta de metáfora infame, perdão rs).
Critérios Diagnósticos
Para doenças menos comuns, vale aquela máxima da medicina: quem não conhece, não faz diagnóstico.
Então, para garantir que nenhum Dozer vai deixar passar um caso de MINOCA, vamos relembrar 2 pontos essenciais no diagnóstico:
MINOCA significa infarto do miocárdio sem lesões coronarianas obstrutivas. Parece óbvio, mas precisamos deixar claro que a primeira condição imperativa é: SER UM INFARTO. Ou seja, MINOCA respeita a 4ª Definição Universal de Infarto:
A presença de lesão miocárdica aguda (ascensão ou queda dos valores de troponina, com pelo menos 1 valor > p99) + contexto clínico de isquemia miocárdica (1 dos seguintes):
Sintomas sugestivos de isquemia miocárdica aguda;
Nova alteração isquêmica no ECG;
Nova onda Q patológica no ECG;
Exame de imagem evidenciando nova alteração de contratilidade ou perda de miocárdio viável consistente com etiologia isquêmica
Ausência de lesões coronarianas obstrutivas maiores que 50% em teste anatômico (mais comumente cateterismo, mas também vale para angiotomografia).
Muito simples não é mesmo? Nem sempre!
Vamos reforçar mais 2 detalhes que você não pode esquecer, para evitar confusões futuras:
A etiologia tem que ser isquêmica! Portanto, ao avaliarmos pacientes suspeitos, o diagnóstico só poderá ser firmado após EXCLUIRMOS causas não isquêmicas, ainda que os demais critérios estejam presentes! Entendido, Sr. Takotsubo e Sra. Miocardite??
É preciso confirmar que não existe DAC obstrutiva > 50%, mesmo em sub-ramos de menor calibre ou lesões distais não diagnosticadas.
📝 Em resumo:
MINOCA é definida pelo infarto agudo do miocárdio (alteração da troponina + evidência de isquemia) + ausência de lesões em coronárias > 50% no estudo anatômico + excluídas causas não-isquêmicas.
Preliminar resolvida, partiu finalmentes… Ainda não, apressadinho(a) rs.
Para facilitar ainda mais nossa investigação e direcionar nosso raciocínio, vale a pena elencarmos as principais etiologias dentro desta síndrome.
Principais Etiologias
🤚🏼But first…
Antes de falarmos das etiologias de MINOCA, vamos deixar mais clara essa história de “excluídas causas não-isquêmicas”.
Isso quer dizer que para chamarmos de MINOCA a causa da lesão miocárdica tem que ter sido um problema nas coronárias. Exclui, então, lesões associadas a outras condições, como miocardite, síndrome de Takotsubo, contusão miocárdica, pós-cardioversão ou desfibrilação etc.
👀 Olho no detalhe:
Essas lesões miocárdicas de causa não isquêmica são englobadas em um grande grupo que a diretriz brasileira de 2021 passou a chamar de TINOCA (do inglês, troponin-positive nonobstructive coronary arteries).
Ok, então o paciente infartou, fez o cateterismo, não tem lesões obstrutivas nas coronárias e você já excluiu causas não-isquêmicas. Finalmente, você pode chamar de MINOCA.
Nesse ponto, vamos dividir as principais causas de MINOCA em 2 grandes grupos:
Origem aterosclerótica: são condições que levaram à instabilidade da placa, e consequentemente, ao infarto, mas sem ser obstrutivas.
Destacam-se a ruptura ou a erosão da placa.
A ocorrência desses eventos pode ser diagnosticada por meio da imagem intravascular (OCT e IVUS).
Origem não-aterosclerótica: nesse caso, a lesão da coronária não teve como causa uma placa, e pode ser várias etiologias como:
Desbalanço oferta-demanda: de forma aguda, o fluxo coronariano não consegue suprir o consumo do miocárdico, seja porque houve um déficit agudo na perfusão coronária (ex.: anemia; choque hipovolêmico) ou porque o músculo está exigindo demais (ex.: arritmias, sepse, embolia pulmonar).
Dissecção espontânea de artéria coronária (SCAD): rara, porém é uma importante etiologia em mulheres com < 50 anos (maior risco em gestantes).
Leva a uma separação das camadas média e adventícia da coronária, com consequente redução do seu fluxo.
O diagnóstico é difícil e, muitas vezes, exige a revisão cuidadosa do cateterismo ou requer o estudo por meio de imagem intravascular.
Disfunção microvascular coronariana (CMD): apesar de uma causa comum de isquemia com coronárias normais (volte 2 semanas para a nossa Prime de INOCA), dificilmente é grave o suficiente para levar a um infarto (apenas 8% das mulheres com INOCA no estudo WISE tinham evidência de IAM prévio).
Na avaliação do cateterismo a “olho nu", o aumento no tempo de enchimento coronariano com a injeção de contraste (> 3 batimentos para o enchimento) pode ser sugestivo da CMD.
❗Lembre: o principal método de avaliação da disfunção microvascular é por meio da avaliação funcional com o cálculo da Reserva de Fluxo Coronário (CFR) durante o cateterismo, que estima o quanto o fluxo coronário é capaz de aumentar sob hiperemia máxima.
Uma CFR ≤ 2 ou 2,5 indica disfunção microvascular e/ou fluxo limitado por um estenose (no caso de MINOCA, não tem estenose significativa).
Outra opção são métodos não-invasivos como a ressonância magnética (exige softwares específicos) e o PET-CT, que identificam a isquemia microvascular por meio do cálculo de índice de reserva de perfusão miocárdica (IRPM) .
Vasoespasmo coronariano: diferentemente da isquemia microvascular, o vasoespasmo epicárdio é uma das principais causas de MINOCA (o estudo CASPAR demonstrou que até 50% dos pacientes portadores de MINOCA apresentavam vasoespasmo durante o teste invasivo com administração de acetilcolina).
❗Lembre: o diagnóstico é por meio da evidência de redução luminal e/ou alterações eletrocardiográficas no cateterismo com a administração de acetilcolina ou ergonovina.
Trombose e embolia coronariana: está relacionada a tromboembolia extra-coronariana, instabilidade de placa ou trombofilias.
Pode ter como fatores associados FA, valvas protéticas, tumores cardíacos, endocardite infecciosa, aneurisma de coronária, alteração fator V de Leiden, deficiência de proteínas C e S, LES e SAF
Como investigar
Agora, depois de tantas preliminares rs; sabendo de cor a definição e as principais causas, chegamos aos finalmentes e podemos discutir a sequência passo a passo para avaliação de casos suspeitos de MINOCA.
Antes de qualquer coisa:
Ao nos depararmos com paciente internado por IAM por angiografia sem aterosclerose obstrutiva, o primeiro passo é REVISAR o caso!
Dois pontos principais devem ser revistos:
O filme do estudo anatômico: ao revisarmos as imagens, podemos nos deparar com alguma obstrução de um pequeno ramo ou a oclusão de leito distal fino por doença aterosclerótica; bem como identificar uma dissecção ou trombose coronariana que tenham passado batido em um primeiro momento!
Além disso, a avaliação funcional do estudo, como com a ventriculografia, pode sugerir outra etiologia como uma síndrome de Takotsubo.
Estado clínico do doente: procurar alguma causa subjacente que determine a ocorrência de IAM por desbalanço sistêmico entre oferta e consumo.
Afastando-se a possibilidade destes eventos e persistindo a suspeita clínica, nossa investigação deve continuar, e para isso, nós teremos 2 caminhos: avaliação não-invasiva ou invasiva.
Avaliação não-invasiva
Aqui quem brilha é a nossa all star, dream team, diva, capa da Vogue: a ressonância magnética cardíaca (RMC)🤩.
Isso porque é o principal método para diferenciar causas isquêmicas de não- isquêmicas.
Ou seja, muitas vezes ela é essencial para bater o martelo se o caso é de MINOCA ou outra causa não-coronariana, como miocardite. Vamos entender:
As causas isquêmicas geralmente estão relacionadas a presença de edema e/ou fibrose miocárdica correspondente a um território coronariano. Apresentam padrão subendocárdico ou transmural na avaliação do realce tardio.
Já as lesões não isquêmicas não costumam apresentar relação com anatomia coronária e a presença de realce tardio ocorre principalmente no meso ou epicárdio (ou seja, um padrão não-coronariano).
👀 Olho no detalhe:
Em uma metanálise que avaliou o uso desta ferramenta na investigação de pacientes com suspeita de MINOCA, o diagnóstico de miocardite foi a principal etiologia encontrada, excluindo mais de 1/4 dos pacientes estudados!
Já na metanálise de Pasupathy et al., mais da metade dos pacientes avaliados encontraram etiologias não isquêmicas como a causa da internação.
Ou seja, nem tudo que brilha é ouro, meu caro Padawan!
❗Lembre-se: quanto mais precoce a investigação da etiologia da MINOCA por meio da RMC, maior a acurácia do método. A realização do exame em até uma semana do evento apresenta uma acurácia diagnóstica ao redor de 90% na diferenciação entre isquemia ou não isquêmia, contudo esses valores podem cair para 70-80%, em até 3 meses.
Avaliação invasiva
A investigação de MINOCA pelo cateterismo inclui 2 abordagens principais:
Teste de vasoespasmo coronário por meio de testes provocativos com acetilcolina ou ergonovina intracoronáros.
Imagem intravascular: o OCT ou IVUS podem ser utilizados para identificar causas de MINOCA que não foram vistas à angiografia convencional, como a presença de dissecção, trombos ou sinais de ruptura/erosão de uma placa aterosclerótica.
Esses testes podem ser realizados já no primeiro momento, quando é identificado que o paciente tem um IAM mas sem lesões obstrutivas no cateterismo; ou após uma investigação não-invasiva que identificou uma causa isquêmica para a lesão miocárdica (ou seja, um realce tardio com padrão coronário na RMC), mas sem distinguir a etiologia.
👀 Olho no detalhe:
Uma recente revisão sistemática sugeriu que a realização de RM seguida de OCT apresenta uma capacidade diagnostica superior a realização do exame não invasivo isoladamente.
Em até uma semana do evento, a realização da investigação combinada apresentou capacidade diagnóstica de MINOCA ou causas alternativas entre 85-100%, enquanto que a RM sozinha não passou de 74%.
Fique por dentro
Foi bom para você? rs
Caso queira mais, aí vão algumas dicas de artigos para aquela leitura complementar:
🫀 Os fluxogramas propostos nesse resumo foram adaptados dessa interessante revisão publicada no ESC em 2021.
🇧🇷 Não pode faltar a diretriz da SBC de 2021 de IAM sem supra-ST, que tem uma sessão muito bem explica do diagnóstico de MINOCA/TINOCA.
🧐 Consenso do AHA sobre o diagnóstico e manejo de MINOCA.
📝 Recente revisão publicada por um grupo norte-americano também com valiosos fluxogramas.
🧲 Revisão sobre o papel da RMC na investigação de MINOCA e demais diagnósticos diferenciais.