Remédio tem hora?
Ensaio Clínico Randomizado (JAMA)
Um dos maiores mitos recentes da hipertensão finalmente ganhou uma resposta robusta. O estudo BedMed, publicado no JAMA, testou em mais de 3.300 pacientes canadenses se o horário de uso da medicação anti-hipertensiva — manhã vs noite — alterava o risco de morte ou eventos cardiovasculares maiores.
Spoiler? Não muda nada.
Com seguimento mediano de 4,6 anos, a incidência do desfecho primário (morte ou hospitalização por AVC, SCA ou IC) foi praticamente idêntica:
2,3 eventos por 100 pessoas-ano no grupo que tomou os medicamentos à noite;
2,4 eventos por 100 pessoas-ano no grupo da manhã (HR 0,96; IC95% 0,77–1,19; p = 0,70).
E o mais importante: sem aumento de efeitos adversos, como quedas, fraturas, glaucoma ou piora cognitiva.
A boa notícia é que o horário não importa tanto quanto achávamos — o que importa mesmo é a adesão ao tratamento e o controle pressórico global.
E os estudos anteriores que mostravam benefício à noite?
Os autores destacam que os polêmicos ensaios MAPEC e Hygia, que apontavam até 60% de redução de eventos com medicação noturna, não seguiram critérios robustos de reporte (pouca transparência quanto a perdas, censuras e adesão). O BedMed e o TIME, mais recentes e bem conduzidos, não confirmaram aqueles resultados.
Conclusão prática: a escolha do horário pode — e deve — ser feita com base no conforto e na rotina do paciente, não na esperança de um efeito “cronoterapêutico mágico”.
A morte à espreita
Artigo de Revisão (JACC)
Você consegue imaginar o que deve ser ter uma morte súbita abortada ou até mesmo receber um choque apropriado de um CDI? O retorno à vida na velocidade de um choque.
Como em um filme de terror, o que deve ser viver à espera do próximo evento (quase) fatal?
Pacientes que sobrevivem a uma parada cardíaca súbita ou recebem choques de desfibriladores implantáveis carregam não só o trauma físico, mas também uma sombra constante de medo e ansiedade.
O estado da arte publicado no JACC revisa as principais repercussões psicológicas desses eventos e propõe caminhos para um cuidado mais humano e integrado.
Pontos principais:
Transtornos mentais pós-SCA ou ICD-S são comuns, mas frequentemente subdiagnosticados. Ansiedade, depressão e sintomas de estresse pós-traumático (TEPT) afetam até 1 em cada 4 pacientes.
A antecipação do choque pode ser tão traumática quanto o próprio evento, levando à hiper-vigilância, isolamento e até evitação de atividades cotidianas.
Famílias também são profundamente impactadas, vivenciando luto antecipado, medo, sobrecarga e necessidade de apoio emocional estruturado.
Tratamentos psicológicos eficazes existem: terapia cognitivo-comportamental (TCC), programas de reabilitação cardíaca com suporte emocional, técnicas de relaxamento e estratégias baseadas em mindfulness demonstram bons resultados.
Falta estrutura: não há diretrizes consolidadas para o cuidado de saúde mental após SCA/ICD-S, e muitos pacientes não recebem nenhum tipo de suporte emocional após alta hospitalar.
Modelo ideal proposto: cuidado multidisciplinar, iniciado ainda na internação, com rastreio psicológico, integração de suporte espiritual, familiar, grupos de apoio e plano terapêutico individualizado.
A sobrevida após um evento cardíaco é apenas o primeiro passo. O verdadeiro desafio pode começar depois, no silêncio da mente.
Como médicos, precisamos olhar além do eletrocardiograma e enxergar o paciente inteiro — inclusive suas cicatrizes invisíveis. Afinal, nem todo choque é elétrico, alguns são existenciais.
Angioplastia e cirurgia: nós não somos iguais
Coorte (EHJ)
Apesar de viverem no mesmo mundo da revascularização, angioplastia e cirurgia são espécies distintas — e isso se evidencia mais ainda quando se fala do uso do FFR (avaliação funcional invasiva) na indicação cirúrgica.
Será que usar o FFR antes de uma cirurgia traz algum benefício? Ou só adiciona complexidade?
O estudo SWEDEHEART foi atrás dessa resposta: analisou retrospectivamente 18.211 pacientes submetidos à primeira cirurgia de revascularização miocárdica (CABG) na Suécia entre 2013 e 2020, sendo que 2.869 tiveram avaliação funcional pré-operatória.
Principais achados:
Não houve diferença em mortalidade, infarto ou AVC entre os grupos com e sem avaliação funcional.
Entretanto, após 2 anos da cirurgia, o grupo com FFR teve:
Maior risco de nova cinecoronariografia (aHR 1,32; IC95% 1,08–1,62; p = 0,008)
Maior risco de nova revascularização (aHR 1,55; IC95% 1,18–2,04; p = 0,002)
Por que isso acontece?
Pacientes com FFR tiveram menos anastomoses cirúrgicas, e o estudo mostrou que esse menor número mediou o risco aumentado de reintervenções.
A ideia de “menos é mais”, que funciona bem na angioplastia com stents, pode não se aplicar aqui. Na cirurgia, talvez a estratégia “mais é mais” (completude cirúrgica, colateralização cirúrgica) seja justamente o que protege o paciente no longo prazo.
O Dozer mais atento, deve estar lembrando-se do estudo FAME 3, que comparou a cirurgia vs a angioplastia em pacientes triarteriais submetidos a FFR. Nele, a cirurgia foi superior. A taxa de eventos cardiovasculares maiores em 1 ano foi 10,6% no grupo FFR-PCI vs 6,9% no grupo CABG (HR 1,5).
Ou seja, mesmo quando guiada pela estratégia funcional, a angioplastia não foi superior à cirurgia. Apesar de seguro no FAME 3, o FFR para guiar cirurgia ainda não mostrou benefício clínico, e pode até estar associado a mais reintervenções.
Tratar a doença aterosclerótica de forma completa, e não guiada apenas pelos resultados hemodinâmicos, parece ser o melhor caminho.
Por ora, a boa e velha angiografia parece suficiente para planejar a cirurgia. FFR pode ser útil na PCI — mas no contexto cirúrgico, ainda não mostrou benefício e pode até complicar o roteiro. O final da história ainda está sendo escrito... mas a cirurgia, por enquanto, segue com o papel principal.
Há limite de tempo para o coração?
Caiu na Mídia
Idade pode ser “só um número” quando falamos do coração?
É isso que sugere a maratonista de 77 anos Jeannie Rice, que acaba de completar a tradicional maratona de Boston — e que segue colecionando recordes mundo afora.
O BBC Brasil publicou uma interessante matéria sobre os feitos de Jeannie. A corredora, que iniciou sua trajetória aos 35 anos para perder peso, décadas depois já acumula mais de 130 maratonas, recordes mundiais nas faixas etárias de 70 a 79 anos, e resultados que surpreendem até os especialistas.
O caso de Jeannie virou estudo publicado no Journal of Applied Physiology (2025), após ela quebrar o recorde mundial na Maratona de Londres com 3h33min, aos 76 anos. Seis dias após a prova, passou por uma avaliação fisiológica completa — e os dados impressionam:
VO₂ máx de 47,9 mL/kg/min — o maior já registrado em uma mulher com mais de 75 anos, superior à média de mulheres de 25 anos;
Frequência cardíaca máxima de 180 bpm, bem acima do esperado para a idade (média estimada seria ~155 bpm);
88% do VO₂ máx sustentados durante a maratona — valor semelhante ao de corredores de elite;
Pico de lactato de 9,14 mmol/L, limiares ventilatórios mantidos em intensidades elevadas e excelente tolerância ao esforço.
O estudo nos mostra que limitar a interpretação fisiológica dos nossos pacientes apenas com base na idade cronológica é um erro clássico.
Parâmetros como VO₂ máx e FC máxima podem fugir (muito!) das previsões — especialmente em indivíduos ativos e bem treinados.
Além disso, a constância do exercício é um dos fatores mais importantes na preservação da performance, saúde cardiovascular e independência funcional ao longo do envelhecimento.
💬 Como a própria Jeannie resume: “Não se renda. A idade é só um número.”
Fique por dentro
💊 Amilorida como boa alternativa à espironolactona na HAS resistente? Em um ensaio clínico com pacientes coreanos com hipertensão resistente, a amilorida demonstrou ser não inferior à espironolactona na redução da pressão arterial sistólica domiciliar após 12 semanas. Ambas as drogas atingiram reduções semelhantes, com cerca de dois terços dos pacientes alcançando níveis abaixo de 130 mmHg.
🍰 Diabetes tipo 1: estudo sueco avalia preditores de eventos cardiovasculares e MACE. Para surpresa de muitos, o prognóstico mostra-se melhor do que o diabetes tipo 2. Difícil acreditar que estes dados seriam semelhantes em uma amostra do serviço público brasileiro. Qual sua opinião?
🫀 A boa e velha síndrome coronariana aguda continua sendo um desafio! Artigo de revisão do EHJ apresenta com uma série de imagens e referências os diversos diagnósticos etiológicos: ruptura e erosão de placa, nódulos calcificados, espasmo, dissecção coronariana aguda. Se você ainda não entende a diferença entre esses conceitos. Este artigo é para você!
💉 Novo tratamento subcutâneo reduz mortalidade e internações em pacientes com amiloidose cardíaca (ATTR-CM). O estudo HELIOS-B mostrou que o vutrisiran, uma terapia de RNA de interferência administrada a cada três meses, reduziu significativamente o risco de mortalidade geral, mortalidade cardiovascular e eventos como hospitalizações e atendimentos de emergência por insuficiência cardíaca em pacientes com amiloidose por transtirretina com cardiomiopatia (ATTR-CM)
🩸 Atenção, vasculares: teoria da veia aberta! Apesar de preferirmos coronárias, a ciência é parecida. Artigo de revisão da AHA avalia as evidências e potenciais benefícios da abertura o mais rápido possível de veias pós síndrome trombótica.
💪🏼 Trabalho para um só homem (ou medicação rs). Resultados iniciais do estudo CATHEDRAL-HF avaliaram os benefícios da manutenção isolada do carvedilol em pacientes com IC melhorada.
🦠 Marcadores inflamatórios e lesão miocárdica silenciosa ajudam a prever eventos cardiovasculares em pessoas com HIV. Análise do estudo REPRIEVE mostrou que, entre pessoas vivendo com HIV e risco cardiovascular tradicional baixo a moderado, a presença de placa coronariana não calcificada, níveis elevados de inflamação (PCR-us, IL-6) e de troponina cardíaca (hs-cTnT) se associaram a maior risco de eventos cardiovasculares maiores (MACE), independentemente do escore de risco tradicional.
🫁 Intervenção precoce com cateter em TEP reduz mortalidade e reinternações. Estudo com mais de 12 mil pacientes com embolia pulmonar (TEP), a realização precoce da terapia baseada em cateter (até 1 dia da admissão) foi associada a menor risco de morte em 90 dias, tanto nos casos de TEP intermediário quanto de alto risco.