Podemos organizar mentalmente o atendimento da dor torácica no pronto-socorro em uma sequência de ações quase coreografadas, como uma peça teatral.
Primeiro ato: o ECG
Não importa se no hospital onde você trabalha é aberta uma ficha separada para os pacientes com queixa de dor torácica na triagem, se você descobriu essa queixa na consulta ou se o paciente (ou o acompanhante) chegou gritando com dor, a conduta seguinte é a mesma:
Solicitar um eletrocardiograma dentro de 10 min da chegada no hospital.
Aqui é o momento no qual você reza para não ter um supra-ST.
E se tiver, essa é outra discussão, para outro resumo.
No entanto, há padrões encontrados no ECG que vão indicar um paciente de alto risco cardiovascular, com necessidade de estratificação invasiva.
Eles estão resumidos na figura abaixo (baseada nesse editorial do JACC), e melhor explicados no suplemento da diretriz europeia de SCASSST.
Segundo ato: avaliando a dor
Ok, o ECG não tinha nenhuma alteração isquêmica aguda (quem não escreve isso sempre no laudo do ECG no prontuário que atire a primeira pedra rs).
Agora é a hora de OUVIR o paciente. E esse é o momento mais importante. Avaliar a característica da dor e entender se é uma dor de padrão anginoso ou não.
Ou seja, aqui você quer saber se o paciente tem uma Síndrome Coronariana Aguda sem Supra-ST (SCASSST) ou uma dor não-cardíaca.
Em 2015, o JAMA lançou uma bela revisão na qual revisa características da dor torácica que aumentam ou reduzem a probabilidade de ser uma SCA.
Aqueles que mais aumentaram:
Irradiação da dor para ambos os braços (especificidade: 96%; razão de verossimilhança positiva: 2,6 [95% IC, 1,8-3,7]);
Dor semelhante a evento prévio (especificidade: 79%; razão de verossimilhança positiva: 2,2 [95% IC, 2,0-2,6]);
Mudança no padrão da dor nas últimas 24h (especificidade: 86%; razão de verossimilhança positiva: 2,0 [95% CI, 1,6-2,4]).
Fun fact: resposta ao nitrato não aumentou a chance de ser SCA.
O que mais reduziu a chance de ser isquêmico foi dor reprodutível a palpação (razão de verossimilhança positiva: 0,28 [95%CI, 0,14-0,54]).
Terceiro ato: solicite a troponina
Você avaliou a dor do paciente, checou os fatores de risco. Te convenceu minimamente? É hora de solicitar a troponina.
Perceba que aqui não falamos “marcadores de necrose miocárdica”, e sim troponina. Não há necessidade de sair pedindo CK e CKMB se você tem a troponina (inclusive, pedir outros marcadores é classe de recomendação III pela diretriz da ESC).
A primeira dúvida é: a troponina do seu serviço é ultrassensível?
Para saber, cheque o valor de referência, se está em ng/mL é convencional; já ng/L é ultrassensível.
‼️ Atenção: certos serviços colocam a troponina ultrassensível em ng/mL, mas com valores de referência bem abaixo de 0 (por exemplo, 0,012 ng/mL - convertendo para ng/L, ficaria um valor de referência de 12).
Boa, Sherlock, mas qual diferença isso faz?
Resposta: no tempo de segurança para considerar o valor de fato negativo. Vamos à orientação da diretriz da SBC de 2021:
Troponina Ultrassensível:
Negativa + dor torácica > 6h (ou > 3h pela ESC) = possibilidade de alta.
Negativa + dor torácica < 6h = repetir em 1h
Troponina Convencional:
Repetir a troponina em 3-6h.
Se a curva de troponina for positiva (parabéns, você acaba de diagnosticar um IAMSSST) = internação + monitorização + programar cateterismo.
Lembre-se! Curva de troponina positiva proposta pela diretriz da SBC é a variação ≥ 20% do seu valor (elevação ou queda!).
Já a 4ª Definição Universal de Infarto considera curva quando a troponina em queda ou elevação tem pelo menos 1 valor acima do p99 daquele kit.
Quarto ato: troponina veio negativa, e agora?
Até aqui estava fácil, né? Paciente veio com dor torácica e troponina positiva, provável IAMSSST. Interna e solicita o CATE.
Mas seu paciente tem dor torácica, troponina negativa, ECG não-diagnóstico e você não sabe se pode ser uma Angina Instável.
Calcule o Escore HEART:
HEART < 4 = avaliar alta precoce.
HEART ≥ 4 = investigar melhor.
O escore HEART utiliza 5 variáveis (característica da dor, idade, fatores de risco, ECG e troponina) para predizer o risco de eventos cardiovasculares em 6 semanas. Valores de 0-3 demonstraram baixíssimo risco de eventos e, assim, são utilizados para alta precoce.
🗣️ Quem disse?
Esse escore foi proposto, inicialmente, em estudo holandês de 2008.
Foi um pequeno estudo, com apenas 122 pacientes com dor torácica.
A ideia dos autores era fazer tipo uma APGAR da cardiologia e escolheram 5 variáveis simples de avaliar no pronto-socorro e montaram um escore na qual cada uma pontuaria de 0-2.
Observaram que apenas 1 paciente (2,5%) com HEART de 0-3 teve um evento maior.
Alguns anos depois, em 2013, os mesmos autores, após entender o potencial do escore (não são bestas né rs), lançaram um estudo prospectivo e outro multicêntrico para validá-lo. Demonstraram um valor preditivo negativo maior que 98% para a ocorrência de MACE em pacientes HEART 0-3.
Assim, conseguimos entender que esse escore te dá uma segurança da ausência de eventos em um períodos de 6 semanas, porém não exclui doença coronária.
Por isso, não deixe de orientar o paciente sobre a necessidade seguimento clínico precoce.
Último ato: HEART ≥ 4, como investigar?
Não se perca: ausência de dor + troponina negativa + ECG sem alterações isquêmicas + HEART < 4 = avaliar alta precoce.
O problema é: se o HEART for ≥ 4? Como prosseguir a investigação desse paciente?
Nesse momento, você precisa precisa pensar em 3 opções:
Direto para cateterismo:
Há aquelas situações óbvias de muito alto risco que exigem que você mande para cateterismo direto (arritmias instáveis, choque cardiogênico, pós-PCR, alterações dinâmicas no ECG) - realizar em até 2h!
Troponina positiva, alterações dinâmicas do ST, GRACE > 140 - realizar em até 24h!
Pacientes com IC, escores de risco muito elevados, história prévia de revascularização (seja angioplastia ou cirúrgica), escores de risco elevados, podem indicar cateterismo direto - realizar em até 72h.
Obs.: essa recomendação está presente apenas na diretriz brasileira; a europeia recomenda avaliar teste não-invasivo nessas situações.
👀 Se liga no detalhe:
Essas recomendações foram retiradas, mais uma vez, das diretrizes da ESC e da SBC.
São vários os estudos que compararam a realização de estratégia invasiva precoce (< 24h) ou tardia (> 36h). Os maiores (TIMACS e VERDICT trials) falharam em demonstrar benefício da intervenção precoce.
No entanto, nesses estudos, pacientes com GRACE > 140 tiveram benefício com CATE < 24h.
Testes funcionais:
Resumindo as indicações da diretriz nacional, podemos dizer que os testes funcionais se encaixam naqueles pacientes com troponina negativa, que estejam há ≥ 24h sem dor e que você imagina (ou saiba) que tem placas ateroscleróticas e quer saber qual a área culpada para tratar.
Angiotomografia de coronárias (angio-TC):
É o melhor método para aquele paciente do PS que tem troponina negativa, ECG não-isquêmico e você está na dúvida se aquela dor é mesmo anginosa.
A angio-TC é um ótimo método para excluir a SCA, como também para te guiar aquele paciente que necessita de uma investigação mais invasiva (em muitos casos, encurtando bastante a permanência do paciente no PS).
🗣️ Quem disse?
O principal estudo que demonstrou o benefício da angio-TC nesse contexto foi o ROMICAT II.
Nele, 1000 pacientes com dor torácica aguda + ECG não-diagnóstico + troponina negativa foram randomizados para realização de angio-TC vs avaliação clínica padrão (que poderia incluir, ou não, exames complementares funcionais).
A realização do estudo anatômico reduziu em aproximadamente 7h o tempo de permanência intra-hospitalar (esse era o desfecho primário do estudo). Além disso, um desfecho secundário de segurança demonstrou não haver aumento de eventos no seguimento em 28 dias dos pacientes submetidos a essa abordagem.
Menção honrosa aos estudos CT-STAT e ACRIN-PA que demonstraram, respectivamente, redução do tempo para diagnóstico em comparação à realização de cintilografia miocárdica, e segurança da realização no método.
E mais: a angio-TC mantém seu papel mesmo na era das troponinas US, conforme demonstrado por esse estudo publicado no JACC.
Fique por dentro
📍 Caminho de avaliação da dor torácica aguda, proposto pelo ACC em 2022.
🔎 Escore de cálcio como triagem inicial dos pacientes com dor torácica na emergência? Olhe essa polêmica coorte publicada em 2022 no JACC: Cardiovascular Imaging.
🧐 Ainda sobre Angio-TC, interessante estado-da-arte sobre o uso desse método na avaliação de dor torácica aguda.
🇧🇷 Estudo nacional comparou os escores de risco cardiovascular com a complexidade da placa aterosclerótica.
The End
Ufaaa 😮💨
Agora ficou mais fácil, não? Siga essa linha de raciocínio na avaliação da dor torácica no PS, sem pular etapas, que você internará ou dará alta ao seu paciente com segurança e embasamento científico.
Antes de finalizarmos, uma dúvida: