A nova teoria para a IC FEP
Artigo de revisão (JACC)
🔥 Imagine o tecido adiposo visceral como uma lareira metabólica. Quando acesa na medida certa, ela aquece o corpo, armazena energia e libera calorias de forma controlada. Mas, quando o fogo fica intenso demais (alimentado por excesso de nutrientes, inflamação e estresse celular), a lareira perde o controle. E, em vez de aquecer, começa a lançar fagulhas inflamatórias por todo o organismo.
Essas fagulhas são as adipocinas: moléculas que, em excesso, inflamam, enrijecem e sobrecarregam o coração.
E é exatamente esse o foco da hipótese adipocina da insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP), proposta por Milton Packer no JACC em 2025.
Packer propõe que a ICFEP não é uma coleção de doenças coexistentes, é a consequência de uma “lareira” fora de controle. Quando o tecido adiposo visceral se expande e entra em disfunção, ele deixa de ser um órgão passivo e passa a agir como um transmissor de estresse sistêmico.
As adipocinas liberadas se espalham pela circulação, aumentam o volume plasmático, promovem fibrose e reduzem a complacência do ventrículo esquerdo.
O autor organiza as adipocinas em três domínios funcionais:
Domínio I, as guardiãs da lareira: adipocinas protetoras, como adiponectina, que reduzem inflamação e protegem o coração, mas são suprimidas pela obesidade.
Domínio II, os bombeiros de emergência: moléculas que tentam conter o dano, mas não dão conta do incêndio.
Domínio III, as fagulhas destrutivas: adipocinas pró-inflamatórias e pró-fibróticas, que intensificam o fogo metabólico e danificam o coração .
O rastro de evidências:
Mais de 95% dos pacientes com ICFEP apresentam adiposidade visceral aumentada.
As alterações nas adipocinas ocorrem anos antes do diagnóstico clínico.
Cirurgia bariátrica, SGLT2i e agonistas de GLP-1 reduzem o tecido adiposo visceral e restauram o equilíbrio entre as adipocinas protetoras e as nocivas .
Durante 30 anos, a hipótese neuro-hormonal explicou a ICFER. Agora, Packer propõe uma nova chama conceitual: a hipótese adipocina, que reposiciona o tecido adiposo como o maestro endócrino do coração diastólico.
Em vez de um coração que falha por cansaço, é um coração que sofre pelo calor tóxico gerado pela gordura visceral disfuncional.
O maior efeito Mandela da cardiologia?
Metanálise (Arquivos Brasileiros de Cardiologia)
Já ouviu falar em “efeito Mandela”?
É uma falsa memória coletiva. Por exemplo, jurar que o Tio do Monopoly usa monóculo (spoiler: não usa) ou lembrar da frase “Luke, eu sou seu pai” quando o certo é “não, eu sou seu pai” em Star Wars.
Pois é. Na cardiologia, talvez o maior “efeito Mandela” seja achar que bloqueio de ramo esquerdo (BRE) novo = infarto com supra de ST (IAMCSST).
Afinal, por anos fomos ensinados a tratar o “BRE novo” como sinônimo de oclusão coronariana aguda (OCA).
Mas… quantos casos de fato de OCA você já viu com essa apresentação?
Essa dúvida também passou pela cabeça do grupo do Instituto Dante Pazzanese, liderado pelo Dr. José de Alencar, que decidiu testar essa crença com uma mega revisão sistemática e metanálise de 51 estudos envolvendo mais de 200 mil pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA).
Os objetivos eram simples e diretos:
Saber se a cronologia do BRE (novo, antigo ou presumivelmente novo) realmente prediz infarto.
E comparar essa estratégia com os critérios eletrocardiográficos de Sgarbossa modificados, que avaliam sinais isquêmicos específicos no ECG.
A conclusão foi cirúrgica: a cronologia do BRE não serve para diagnosticar IAM.
Os números não deixam dúvidas:
Razão de verossimilhança positiva (RV+) do “BRE novo”: 1,30 (IC 95% 0,75–1,85)
Razão de verossimilhança negativa (RV–): 0,90 (IC 95% 0,79–1,02) ➡️ Ou seja, não muda a probabilidade pré-teste nem pós-teste de infarto.
Em contrapartida, os Critérios de Sgarbossa Modificados brilharam:
Sensibilidade: 83,6%
Especificidade: 92,6%
RV+: 11,3
RV–: 0,17
Esses valores significam que um ECG com esses critérios positivos tem 11x maior chance de oclusão coronariana, algo que a cronologia do BRE jamais chegou perto de fazer.
Na emergência, diante de um paciente com dor torácica e BRE, o raciocínio precisa mudar:
❌ Parar de olhar “é novo ou não?”
✅ Passar a procurar “tem sinal de isquemia?”Ou seja, a cronologia não importa, o contexto isquêmico sim. Os autores reforçam que o uso dos critérios de Sgarbossa é muito mais acurado e evita cateterismos desnecessários, além de alinhar a prática com as diretrizes modernas da AHA/ACC e da ESC.
Os japoneses ensinam
Coorte (EHJ)
⚾️ Aos fãs de baseball, não é novidade: os japoneses têm muito a ensinar; e Shohei Ohtani, o fenômeno que faz os americanos reverem o que é excelência no esporte, é a prova viva disso.
Mas o aprendizado não para no campo. Quando o assunto é cardiologia, os nossos colegas orientais também estão dando aula.
Nesta semana, o grupo do J-PVAD registry publicou no European Heart Journal uma análise monumental sobre pacientes com choque cardiogênico pós-infarto (CS-AMI) tratados com Impella.
💡 Entenda o contexto: o choque cardiogênico continua sendo o pior pesadelo do cardiologista intervencionista, com mortalidade de 30% a 50%, mesmo com reperfusão e suporte máximo.
O Impella surgiu como uma alternativa capaz de estabilizar a hemodinâmica e ganhar tempo para o miocárdio, porém a sua real indicação fora do ambiente controlado dos trials sempre gerou debate.
O estudo DanGer Shock, publicado em 2024, mostrou benefício do Impella em pacientes com IAMCSST e choque severo, mas com critérios rígidos (lactato ≥2,5 mmol/L, PAS <100 mmHg, FEVE <45% e suporte iniciado até 24h do choque). Na prática, muitos pacientes do mundo real não se encaixam nesse perfil.
E foi aí que os japoneses entraram em campo. O registro J-PVAD incluiu 3.975 pacientes com IAM tratados com Impella entre 2020 e 2023, divididos em cinco grupos:
IAMCSST elegível para DanGer Shock (35,6%);
IAMCSST não elegível (20,6%);
Parada cardiorrespiratória extra-hospitalar (25%);
Complicação mecânica (5,4%);
IAMSSST (13,4%).
E os resultados… foram uma aula de realidade clínica.
Apenas 35,6% preenchiam os critérios DanGer Shock.
Mortalidade entre os DanGer Shock positivos: 37,6%.
Mortalidade entre os que não preenchiam os critérios: 27,6%.
À primeira vista, parece que quem ficou fora dos critérios teve melhor prognóstico. Mas o grupo era altamente heterogêneo, e dentro dele havia subgrupos com mortalidade assustadora:
PCR extra-hospitalar: 51,3%
Complicação mecânica: 39,8%
Ou seja, apenas um terço dos pacientes do mundo real atende aos critérios DanGer Shock, e os demais representam um grupo muito mais heterogêneo, com risco altíssimo, especialmente em idosos, pacientes com disfunção renal, uso de ECMO-VA ou encefalopatia hipóxica
O recado japonês é direto: não dá pra aplicar critérios de trial cegamente na prática. O Impella pode, e deve, ser considerado fora do escopo do DanGer Shock, desde que o raciocínio clínico e o contexto hemodinâmico justifiquem.
Mais do que seguir protocolos, a lição é sobre individualizar. Porque no choque, cada hora e cada variável contam, e a “disciplina tática” dos japoneses talvez seja o que mais precisamos aprender.
Imagem da semana
Dupla lesão valvar aórtica vista à ressonância magnética cardíaca. Observe o turbilhonamento do jato na topografia da valva aórtica, associado ao jato regurgitante durante a diástole.
Dúvidas sobre o mundo da RMC? Veja a DozePrime sobre o tema:
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