Até tu, hepatos?
Ensaio clínico randomizado (NEJM)
Ela já caiu nas graças dos cardiologistas, dos endocrinologistas — e até mesmo dos nefrologistas (esses, sabemos, não se impressionam fácil rs).
Era só questão de tempo até buscar novos públicos…
O ensaio clínico de fase 3, ESSENCE, recém-publicado no New England Journal of Medicine, colocou a semaglutida sob os holofotes dos hepatologistas.
O estudo avaliou sua eficácia no tratamento da esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH) — nova sigla que substitui a antiga NASH — com resultados animadores.
Mais de 1.200 pacientes com MASH e fibrose F2 ou F3 foram randomizados para receber semaglutida (em doses de até 2,4 mg) ou placebo por 76 semanas.
Os resultados falaram alto:
Desfecho primário: 59% dos pacientes no grupo da semaglutida apresentaram resolução da MASH sem piora da fibrose, comparado a 17% no grupo placebo (p < 0,001);
Já a melhora da fibrose ocorreu em 43% vs 33% — sem diferença estatística significativa (p = 0,09).
🤔 E a cardiologia com tudo isso?
A MASH não é só uma “doença do fígado”. Ela compartilha comorbidades importantes com as doenças cardiovasculares — como obesidade, dislipidemia, hipertensão, diabetes tipo 2 e síndrome metabólica — e está diretamente associada a um risco aumentado de infarto, AVC e insuficiência cardíaca.
Estudos mostram que quanto maior o número de fatores de risco cardiometabólicos, maior o risco cardiovascular nesses pacientes. E mais: há associação com espessamento da íntima-média carotídea e presença de placas ateroscleróticas instáveis.
Ou seja: tratar a MASH com uma medicação que também reduz peso, inflamação e risco CV pode ser um divisor de águas na prevenção cardiovascular. É ataque múltiplo aos alvos mais perigosos da medicina moderna.
Assim, a semaglutida ainda não é o “remédio da fibrose” — mas já mostrou que pode apagar o fogo da inflamação e atacar a raiz metabólica do problema.
O resto, a gente acompanha de perto nas próximas fases...
Dose de estrógeno, pitada de testosterona
Artigo de revisão (JACC)
Seriam os hormônios os novos marcadores de risco para IC?
Durante muito tempo, o sistema cardiovascular e o sistema hormonal foram tratados como vizinhos educados, mas distantes. No entanto, evidências recentes sugerem que eles andam bem mais íntimos do que imaginávamos — principalmente quando o assunto é insuficiência cardíaca (IC).
Uma revisão robusta publicada no JACC: Advances escancarou essa conexão: os hormônios sexuais, especialmente estradiol e testosterona, podem ter papel direto na fisiopatologia e no risco de desenvolvimento de IC.
A lógica é simples, mas poderosa: ao longo da vida, tanto mulheres quanto homens passam por mudanças hormonais marcantes — menopausa de um lado, andropausa do outro. Esses declínios hormonais não afetam apenas libido ou composição corporal, mas também remodelam profundamente o funcionamento cardiovascular.
O estudo reuniu evidências mostrando que mulheres na pós-menopausa com maior razão testosterona/estradiol tinham maior risco de desenvolver IC com fração de ejeção reduzida (IC FER). Já entre os homens, níveis baixos de testosterona livre foram associados a pior prognóstico e maior mortalidade relacionada à IC.
Esses hormônios também parecem influenciar marcadores de remodelamento cardíaco, função endotelial, inflamação e resposta ao estresse oxidativo.
Em outras palavras: a desregulação hormonal pode ser tanto gatilho quanto acelerador da IC.
As terapias hormonais, como a TRT (reposição de testosterona em homens) e a MHT (terapia hormonal na menopausa), ainda geram debates. Há indícios de benefício cardiovascular em populações bem selecionadas, mas os riscos e as incertezas permanecem.
O artigo faz um apelo à cautela, destacando a necessidade de estudos mais sólidos para guiar decisões clínicas.
Turma do "suco: MUITA CALMA NESSA HORA!
Um ponto técnico, mas crucial, também deve ser destacado: a forma como dosamos esses hormônios. A revisão aponta as limitações dos métodos imunológicos tradicionais, sugerindo que a espectrometria de massa pode oferecer maior precisão — o que será fundamental se quisermos realmente usar esses marcadores na prática clínica.
Se os dados continuarem se acumulando, é possível que em breve tenhamos modelos de risco para IC que levem em conta o perfil hormonal, ao lado de parâmetros já consagrados como BNP e fração de ejeção. Isso representaria um avanço significativo rumo a uma cardiologia de precisão, sensível às diferenças biológicas entre sexos e estágios da vida.
Isso é Calypso!
Ensaio Clínico Randomizado (JAMA)
🎶 "Calypsoooo!" — Se antes era sinônimo de música boa, agora é também sinônimo de intervenção guiada por imagem de alta precisão na cardiologia.
O estudo CALIPSO (Calcified Lesion Intervention Planning Steered by OCT) colocou a OCT no centro da arena da angioplastia coronariana de lesões calcificadas.
A proposta foi simples e certeira: será que usar um algoritmo baseado em OCT para guiar a preparação e a implantação do stent resulta em uma maior área luminal mínima (ALM) quando comparado ao método tradicional guiado apenas por angiografia.
Em outras palavras, testar se o resultado é superior à realização do tratamento sem utilização da imagem intracoronária.
O desenho do estudo:
Ensaio clínico randomizado, multicêntrico, conduzido em 12 centros na França, entre dezembro de 2021 e junho de 2023.
População: pacientes com síndrome coronariana crônica e lesões calcificadas moderadas a severas, com indicação de angioplastia.
Intervenção: angioplastia guiada por OCT (com algoritmo pré-definido) versus guiada apenas por angiografia.
Desfecho primário: área luminal mínima avaliada por OCT após o procedimento.
Os resultados:
134 pacientes incluídos na análise final (65 OCT vs 69 Angio).
Idade média de 73 anos, sendo 25% mulheres.
A ALM foi significativamente maior no grupo OCT: 6,5 [5,5–8,1] mm² vs 5,0 [4,1–6,1] mm² (P < 0,001).
Não houve diferença no volume de contraste, tempo de procedimento ou complicações periprocedimento.
O uso de litotripsia intravascular foi mais frequente no grupo OCT (46% vs 12%; P < 0,001).
O uso da imagem intravascular permitiu uma avaliação mais precisa da carga cálcica e, com isso, uma maior indicação de dispositivos específicos como a litotripsia e a rota-ablação.
A consequência? Melhor preparação da lesão e maior expansão do stent — fatores críticos em lesões calcificadas, conhecidas por seus piores desfechos técnicos e clínicos.
Vale lembrar que ambos os grupos tinham acesso ao mesmo arsenal terapêutico. A diferença foi a presença (ou ausência) da OCT para guiar as decisões — e isso fez toda a diferença. Ainda que o estudo não tenha avaliado desfechos clínicos, ele reforça o papel técnico da imagem intravascular, especialmente no manejo das lesões mais complexas.
⚠️ O desafio permanece: incorporar essa estratégia na prática clínica rotineira, diante de barreiras como custo e cobertura pelos sistemas de saúde.
A crise silenciosa da formação médica
Caiu na Mídia
Há poucos meses, discutíamos aqui na DozeNews acerca do aumento do número de médicos no Brasil: um aumento de 23,6% desde 2019.
O que poderia representar um avanço importante na assistência à saúde no país esbarra, porém, numa realidade conhecida (e pouco resolvida): a desigualdade geográfica na distribuição desses profissionais. Enquanto o Sudeste tem 29,2 médicos por 10 mil habitantes, o Norte e o Nordeste ficam com apenas 13 e 16,5, respectivamente.
Essa semana, uma nova matéria do jornal Folha de São Paulo trouxe dados ainda mais robustos e algumas projeções que merecem atenção.
O número total de médicos no Brasil chegou a 597.428 em 2024, e, segundo o estudo Demografia Médica no Brasil 2025 — conduzido pela AMB, Ministério da Saúde, Opas e FMUSP —, esse número pode dobrar até 2035.
📊 Entre os destaques do relatório:
Pela primeira vez, as mulheres são maioria entre os médicos no país, representando 50,9% do total de profissionais em 2025 (ufa, uma boa notícia!).
A densidade médica deve ultrapassar 5 médicos por 1.000 habitantes até 2035 — o que colocaria o Brasil entre os países com maior proporção de médicos no mundo.
Apesar disso, a desigualdade regional segue firme: o Distrito Federal lidera com 6,28 médicos por 1.000 habitantes, enquanto o Maranhão amarga o menor índice (1,27).
Outro ponto importante diz respeito à formação. De 2004 a 2024, foram abertas, em média, 2.538 novas vagas de medicina por ano. Em 2004 havia 132 cursos e 13.820 vagas. Para 2024, a projeção é de 448 cursos e 48.491 vagas — 65% delas fora das capitais e majoritariamente em instituições privadas.
Qual o problema? O crescimento da graduação não veio acompanhado pela expansão das residências médicas.
Atualmente, o Brasil tem cerca de 287 mil estudantes de medicina e apenas 47,7 mil médicos residentes. A maioria está concentrada nas capitais, especialmente no Sudeste — sendo que 9 das 10 maiores residências estão em São Paulo.
A medicina no Brasil se depara com dois grandes desafios nos próximos anos:
Como direcionar esse excesso de médicos para os locais que realmente necessitam da sua atuação?
E aqui vale lembrar: não se trata apenas de enviar profissionais — é preciso garantir condições mínimas de trabalho para que o cuidado ao paciente seja viável.
Como reconectar formação e especialização, evitando que o crescimento desenfreado da graduação médica comprometa a qualidade do atendimento no país?
Em resposta a esse cenário, o Ministério da Saúde anunciou a criação de uma comissão interministerial para discutir a formação médica no Brasil, com representantes da AMB, CFM e outras entidades. A primeira reunião já está marcada para esta semana.
Aguardemos as cenas dos próximos capítulos…
Fique por dentro
🧠 IAM e AVC: relação causal da Lp(a) em pacientes europeus e asiáticos demonstra associação com esses eventos isquêmicos, mas não com hemorragia intracraniana.
🏃♂️ Sobrevive-se mais à parada cardíaca súbita nos esportes, mas nem todos igualmente. Estudo com 641 atletas nos EUA mostrou melhora na taxa de sobrevivência ao longo de 9 anos, alcançando 57% nos casos durante o exercício. Eventos em competições tiveram mais chances de desfecho favorável do que nos treinos (70% vs 53%). No entanto, atletas negros e de outras etnias tiveram menor taxa de sobrevivência, assim como nos casos fora de esforço físico.
🦠 Pessoas com HIV se beneficiam de estatinas mesmo com risco cardiovascular moderado. Revisão publicada no The Lancet destaca que a Sociedade Europeia de AIDS agora recomenda estatinas de intensidade moderada a partir de um SCORE2 ≥5%, ou ≥2,5% se acima de 50 anos, podendo ser consideradas já aos 40 anos, mesmo com risco estimado <5%.
🧈 Contar partículas apoB e Lp(a) é mais útil do que medir tipos ou tamanhos de lipoproteínas. Em mais de 200 mil participantes do UK Biobank, o número total de partículas contendo apolipoproteína B (apoB-P) foi o melhor preditor de risco para doença arterial coronariana, independentemente do tipo (VLDL ou LDL) ou do tamanho dessas partículas.
🎈Balões farmacológicos em alta. Para quem acompanhou a edição da semana passada, na qual discutimos algumas das suas nuances, foi a vez dos asiáticos publicarem um consenso sobre o seu uso.
👩🏽 Dissecção espontânea da coronária esquerda é rara, grave e mais comum do que se pensava em mulheres jovens, especialmente no contexto gestacional. Estudo observacional com 132 casos publicado no JACC: Cardiovascular Interventions revelou que a maioria dos pacientes se apresenta com síndrome coronariana aguda, e muitos evoluem com choque cardiogênico ou arritmias ventriculares. Estratégias conservadoras mostraram piores desfechos: a revascularização precoce, seja por angioplastia ou cirurgia, reduziu significativamente eventos como infarto recorrente, necessidade de transplante e mortalidade.
🚑 Erros na triagem do pronto-socorro ainda geram atrasos relevantes em emergências graves como hemorragia subaracnoide e dissecção aórtica. Em um estudo com quase 6 mil pacientes, um em cada três foi subtriado, o que resultou em atrasos significativos em exames e medicamentos essenciais. O achado reforça a necessidade de aprimorar protocolos de triagem para condições menos óbvias, mas igualmente letais.
💊 Anticoagular ou não? Para fibrilação atrial subclínica, o benefício parece pequeno e incerto. Neste modelo analítico com 20 mil pacientes simulados, o uso de anticoagulantes orais diretos preveniu alguns AVCs e mortes, mas aumentou significativamente os sangramentos maiores. O ganho final foi de apenas uma semana de vida ajustada por qualidade em 10 anos.
🧬 Fibrilação atrial precoce pode sinalizar risco genético elevado para cardiomiopatia. Em estudo publicado no JAMA com duas grandes coortes, variantes patogênicas associadas a cardiomiopatias foram até cinco vezes mais comuns em pacientes com FA de início antes dos 45 anos.