Todos os anos, o congresso da American Heart Association (AHA) é responsável por encerrar a “programação científica” da cardiologia no ano.
🗝 Dessa vez, fechou com chave de ouro.
Desde o dia 16 de novembro até hoje, o mundo da cardiologia esteve com os olhos voltados para a cidade de Chicago, onde foram apresentados grandes e esperados estudos: alguns com potencial para mudar nossas condutas na prática clínica, e outros que muito prometeram e pouco entregaram.
Prepara o jazz que vamos, agora, mergulhar nas principais novidades.
Dia 1: começa o sábado em Chicago
Já na primeira sessão de late breaking trials o congresso chegou com tudo!
Não deixou nada a desejar, e nos apresentou 3 grandes e relevantes estudos.
O BPROAD Trial veio bem a calhar em meio às polêmicas das mudanças nas metas de controle pressórico na última diretriz da ESC ao questionar: há benefício no controle intensivo da pressão arterial (PA) em pacientes com DM2?
Para isso, randomizou 12.821 pacientes com mais de 50 anos e DM2 de 145 centros na China para controle intensivo (meta de PAS < 120 mmHg) ou habitual (PAS < 140 mmHg) da PA.
Ponto para o controle intensivo: após 4,2 anos de seguimento, os pacientes que mantiveram uma média de PA de 121,6 mmHg tiveram menor ocorrência de eventos cardiovasculares.
Sei que está pensando: e os efeitos colaterais?.
Nessa população consideravelmente jovem (uma média de idade de 63 anos) a ocorrência de eventos adversos graves foi similar entre os grupos.
No entanto, hipotensão e hipercalemia foram mais comuns no grupo do controle intensivo (surpreendendo ninguém rs).
O SUMMIT Trial trouxe um importante reforço ao tratamento da IC FEP e obesidade: a tirzepatida.
Esse agonista da GIP e da GLP-1 na dose de 15 mg/semana foi testado em pacientes com IC com FEVE > 50% e IMC > 30 kg/m2 quanto a redução de eventos cardiovasculares (morte ou hospitalização) e melhora na qualidade de vida.
Os resultados seguiram aquilo que já esperávamos: o grupo que recebeu tirzepatida apresentou menos eventos e ainda houve uma melhora significativa na qualidade de vida.
Após o boom dos aGLP1 em 2023 no tratamento da IC FEP com estudos como o STEP-HFpEF, a tirzepatida une-se à semaglutida nesse cenário tão atual.
No NEX-Z Trial, encontramos a “geração z” do tratamento da cardiopatia amiloidótica do tipo transtirretina (ATTR), o Nexiguran ziclumeran, ou simplesmente nex-z.
Essa medicação, que é um tipo de CRISPR-Cas9, funciona como uma “editor genético”, que tem como alvo o gene responsável pela produção da transtirretina.
Esse estudo fase 1 incluiu 36 pacientes com um seguimento de 12 semanas e foi capaz de demonstrar segurança e eficácia da medicação em redução tanto da concentração da TTR, como queda do NT-Pro-BNP e da troponina e melhora no teste de caminhada de 6 minutos.
Sim, ainda há um longo caminho antes dessa medicação tornar-se uma realidade. Foi um primeiro passo.
Estudos em arritmias:
Se tem uma área que tem crescido dentro da cardiologia, sem dúvidas é a eletrofisiologia e o tratamento das arritmias. Por isso, o primeiro dia do congresso seguiu com a apresentação de interessantes estudos no campo dos “eletricistas”:
VANISH2 Trial: demonstrou benefício do tratamento de taquicardias ventriculares por meio da ablação em pacientes com cardiopatia isquêmica, quando comparado à amiodarona.
BRAIN AF: avaliou o benefício do tratamento com rivaroxabana na redução do declínio cognitivo, AVC isquêmico ou AIT, quando comparado ao placebo. Frustração para os entusiastas da anticoagulação, que viram o DOAC falhar na tentativa do benefício da manutenção da saúde cognitiva na FA.
OPTION Trial: o fechamento do apêndice atrial esquerdo foi associado a menor risco de sangramento não relacionado ao procedimento e foi não inferior à anticoagulação oral quanto a eventos de morte, AVC, ou embolia sistêmica em 36 meses.
🤖 Por fim, menção honrosa no mundo da inteligência artifical (IA) ao estudo AI-ECHO que demonstrou que a análise automatizada de imagens baseada nesse método melhorou a eficiência dos exames ecocardiográficos, reduzindo o tempo de exame e a fadiga mental dos ecocardiografistas, além de aumentar o número de parâmetros analisados.
Dia 2 - o domingo que prometia ser glorioso
No domingo ensolarado de congresso, o glamour do céu azul contrastou com uma sequência de estudos clínicos com resultados decepcionantes.
Vamos aos destaques:
O GLORIOUS Trial buscou avaliar o impacto da administração de Exenatide em pacientes submetidos a cirurgias cardíacas de grande porte, como a troca valvar aórtica e a revascularização do miocárdio.
Com uma população de 1.389 pacientes e um seguimento médio de quase seis anos, o estudo comparou o uso de Exenatide (17,4 mcg) administrado antes da cirurgia contra placebo.
O desfecho primário composto incluiu eventos graves como morte, AVC, falência renal e descompensação de insuficiência cardíaca. Os resultados mostraram que não houve diferença significativa entre os grupos: 24% dos pacientes em ambos os braços (HR = 1,0; IC 95%: 0,83-1,3; P = 0,8).
Os resultados indicaram que o Exenatide não oferece proteção adicional contra complicações graves em pacientes cirúrgicos. Foi uma conclusão decepcionante para um tratamento que esperava-se ser protetor.
No CLEAR SYNERGY (OASYS 9) Trial, os pesquisadores investigaram se o uso de Espironolactona poderia trazer benefícios adicionais em pacientes durante a recuperação de um infarto agudo do miocárdio (IAM).
Este foi um estudo complexo, com um desenho fatorial 2x2, que avaliou tanto a Espironolactona quanto a Colchicina em comparação a placebo (resultados da Colchicina já publicados no TCT e comentados aqui na DozeNews).
Com uma ampla população de 7.062 pacientes de 14 países, o braço de Espironolactona foi analisado quanto à sua capacidade de reduzir eventos cardiovasculares e nova ou piora de insuficiência cardíaca.
Os resultados não foram encorajadores: não houve diferença significativa nos desfechos primários, com 1,7% dos pacientes no grupo Espironolactona versus 2,1% no grupo placebo apresentando eventos, e uma análise estatística mostrando um IC de 0,91 (0,69-1,21) e P = 0,51.
Da mesma forma, o tempo até eventos cardiovasculares maiores, como morte e AVC, não diferiu entre os grupos (7,9% vs. 8,3%, IC: 0,95, P = 0,52).
Assim, apesar do potencial da Espironolactona em reduzir o risco de insuficiência cardíaca, este benefício não se traduziu em uma redução de mortalidade ou eventos cardíacos significativos, frustrando as expectativas dos pesquisadores.
Em seguida, o ENBalv Trial ofereceu uma perspectiva sobre o uso de anticoagulantes no contexto pós-operatório de implante de bioprótese mitral ou aórtica.
O estudo comparou a eficácia da Edoxabana contra a Varfarina, com uma população final de 389 pacientes.
Os pesquisadores avaliaram os desfechos de AVC e embolia sistêmica, bem como a incidência de sangramentos maiores.
Os resultados mostraram que a Edoxabana teve uma eficácia comparável à Varfarina, com taxas de AVC e embolia sistêmica de 0,5% versus 1,5%, respectivamente. A diferença observada foi de -1,03%, mas o intervalo de confiança (IC 95%: −4,34 a 1,95) sugere que não houve diferença estatisticamente significativa.
🚩 No entanto, um ponto de preocupação foi o aumento de sangramentos maiores no grupo Edoxabana (4,1%) em comparação com a Varfarina (1%).
Apesar disso, não houve aumento de sangramentos fatais ou intracranianos, o que sugere que a Edoxabana pode ser uma alternativa viável para anticoagulação após implante de bioprótese, desde que o risco de sangramento seja monitorado de perto.
Na tarde do segundo dia, o grande destaque foi o NUDGE FLU. Os resultados destacaram o impacto de intervenções eletrônicas comportamentais (nudges) no aumento da adesão à vacinação contra a gripe em pacientes com histórico de infarto agudo do miocárdio (IAM).
Com base em três ensaios clínicos randomizados realizados em nível nacional na Dinamarca, que englobaram mais de 2,1 milhões de participantes durante as temporadas de gripe de 2022 a 2024, o estudo revelou que cartas eletrônicas enfatizando os benefícios cardiovasculares da vacinação aumentaram significativamente a adesão, especialmente em pacientes de alto risco, como aqueles com IAM e doenças crônicas.
Essa abordagem de baixo custo e escalável foi aclamada como uma estratégia inovadora para proteger pacientes de alto risco, fortalecendo o papel da prevenção na prática clínica.
Dia 3 - segundona com novidades quentes
E não para por aqui! O terceiro e último dia de congresso ainda promete a apresentação de interessantes trials:
SARAH - Efeitos do sacubitril-valsartan na prevenção da cardiotoxicidade em pacientes de alto risco submetidos à quimioterapia com antraciclinas;
REALIZE-K - Otimização do ciclossilicato de zircônio sódico e antagonista do receptor mineralocorticoide na insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida e hipercalemia;
PROMPT-AF - Comparação da ablação linear associada a isolamento das veias pulmonares versus apenas isolamento das veias pulmonares no tratamento fa FA persistente;
CRRF-PeAF - Ablação por criobalão versus ablação por radiofrequência em pacientes com fibrilação atrial persistente (CRRF-PeAF);
TRIM-AF - Ensaio controlado randomizado de metformina e modificação de estilo de vida/fatores de risco para prevenção primária da progressão da fibrilação atrial.
ARREST-AF - Ensaio clínico randomizado da redução agressiva de fatores de risco para fibrilação atrial e suas implicações nos resultados da ablação.
ALPACAR - Estudo de fase 2 do zerlasiran, que avaliou o benefício de múltiplas doses de um short-interfering RNA direcionado à lipoproteína(a) por 60 semanas.
Quem acompanha a nossa página no Instagram, já deve ter percebido que, ao final do dia, temos publicados os principais estudos.
😉 Hoje não será diferente, fique de olho e logo mais traremos esses resultados assim que forem apresentados.
Diretrizes novas da AHA
⚡ Revisão de reanimação cardiopulmonar neonatal, pediátrica e de adultos!
🧒🏻 Atualização sobre Doença de Kawasaki.
🤕 Guidelines AHA de primeiros socorros: conhecimento essencial além da cardiologia!
Valvopatia aórtica em destaque nas demais publicações da semana
🔪 Prótese biológica, prótese mecânica, TAVI ou Cirurgia de Ross? Revisão do JACC destaca abordagem multidisciplinar para tratamento de estenose aórtica em jovens de baixo risco, frente ao uso crescente de TAVI apesar da limitada durabilidade e dados disponíveis.
⏱️ Não perca o timing! Seguindo a linha de valvopatia aórtica, essa interessante revisão do JACC debate o momento certo para o tratamento da estenose aórtica.
🇪🇸 Ponto para a TAVI! Grande coorte espanhola mostra que PCI + TAVI apresenta menores taxas de mortalidade e AVC em 1 ano, em comparação com CABG + SAVR, em pacientes com estenose aórtica grave e doença coronariana, sugerindo uma alternativa menos invasiva.
Fique por Dentro
🫀 Revisão do The Lancet aborda definições, manejo e lacunas no conhecimento sobre choque cardiogênico, destacando benefícios da revascularização precoce e suporte circulatório, mas questionando terapias farmacológicas e dispositivos de suporte. Imperdível!
⌚ Estudo GUARD-AF revela que rastreamento de fibrilação atrial com monitor de 14 dias em idosos não reduziu hospitalizações por AVC, apesar do aumento na detecção e uso de anticoagulantes.
🧓🏻 Indo na contramão de ensaios randomizados, grande coorte retrospectiva revela que revascularização em pacientes frágeis com síndrome coronariana aguda está associada a benefícios de sobrevivência a curto e longo prazo, apesar do maior risco inicial.
🇪🇺 Projeto EuroHeart define padrões internacionais para desfechos em estudos cardiovasculares, facilitando pesquisas clínicas de alta qualidade e melhoria contínua do cuidado ao paciente.
🤓 Saiba em apenas uma página um pouco sobre a história de Thomas Killip III, no The Lancet.