Grandes dualidades
A linha invisível entre o normal e o patológico
Você verá nesta edição:
🫀 Normal ou patológico? - Medida simples e prática promete revolucionar a avaliação de remodelamento no ECO.
🤨 Troca valvar ou vigilância? - Qual o preço a se pagar pelo "watchful waiting" na EAo grave assintomática.
📚 CRM ou ATC? - qual tem os melhores desfechos em mulheres.É fisiológico ou patológico?
Coorte (European Heart Journal)
Todo mundo já passou por isso: um paciente com átrio esquerdo “grande”, fração de ejeção normal, diástole meio duvidosa… e aquela pulga atrás da orelha: é atleta? é doença? estou superestimando algo?
Um estudo robusto publicado no EHJ Cardiovascular Imaging traz uma solução elegante, e incrivelmente prática: não olhe o átrio sozinho. Compare-o ao ventrículo.
Os autores propõem o índice LA:LV, a razão entre volume sistólico final do AE (LAESV) e volume diastólico final do VE (LVEDV) (dois números que já vêm no laudo padrão).
Mais simples que isso, só a lógica por trás:
em condições saudáveis (atleta, gestante, indivíduo muito condicionado), átrio e ventrículo crescem juntos.
na doença (FA, IC FEP, pressão de enchimento elevada), há uma desproporção entre o crescimento atrial e ventricular.
“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. MENCKEN, HL.
Será que deu certo mesmo na prática?
O estudo incluiu 2.943 indivíduos, sendo 1.600 saudáveis (incluindo 326 atletas) e 1.343 com cardiopatia (DAC, valvopatias, HFpEF, FA etc) submetidos a ecocardiograma transtorácico e teste cardiopulmonar.
Vamos aos principais achados:
1. Normal vs doença:
Saudáveis: LA:LV ~ 0,49
Patológico: 0,53
FA: 0,60
IC FEP: 0,70 (≈30% acima dos saudáveis)
Interpretação direta: quanto mais o AE cresce desproporcionalmente ao VE, maior o sinal de sofrimento hemodinâmico crônico.
2. Atletas:
Atletas tinham AE e VE maiores, mas LA:LV preservado (~0,48), ou seja, o coração “cresce em harmonia”.
3. A pegadinha do índice do volume do AE:
Entre todos com LAVi ≥ 34 mL/m²:
Só 7% do quartil mais condicionado (Q4) tinham LA:LV ≥ 0,75
Nos menos condicionados (Q1), 62% tinham LA:LV ≥ 0,75
De forma prática, se o AE cresce de forma desproporcional ao VE algo está errado, incluindo situações de disfunção diastólica, pressão de enchimento aumentada, inflamação atrial e até IC FEP.
Quanto maior essa proporção, maior a probabilidade de estarmos diante de um quadro patológico, de forma que:
LA:LV ≈ 0,5 → fisiológico
LA:LV ≥ 0,75 → patológico (red flag)
Assim, por meio de um cálculo extremamente simples, com base em dados já presentes nos laudos ecocardiográficos habituais e sem a necessidade de softwares dedicados ou strain, podemos ter uma informação muito importante acerca de alterações muitas vezes ainda subclínicas (ou até evitar superdiagnósticos em atletas).
Troca valvar ou vigilância clínica?
Subanálise EARLY-TAVR (JACC: Cardiovascular Interventions)
Quem lida com valvopatias, constantemente vê-se diante de um dilema: é hora de intervir nessa válvula mesmo que esteja assintomático?
No mundo da TAVR, essa discussão ganhou força após a publicação do EARLY-TAVR, no NEJM, que mostrou redução clara do desfecho composto (morte, AVC ou hospitalização cardiovascular) no grupo da intervenção precoce, comparado à vigilância clínica guiada por diretrizes.
Agora, uma subanálise publicada no JACC: Cardiovascular Interventions aprofunda essa pergunta: o que acontece com os pacientes do “watchful waiting” que acabam precisando intervir depois? E, principalmente: eles “pagam algum preço” por esperar?
O estudo comparou quem recebeu TAVR cedo com quem recebeu a troca valvar tardia (ou, do inglês, aortic valve replacement (AVR)) após vigilância clínica. Entre os 388 pacientes da vigilância que acabaram operados, o tempo mediano até o procedimento foi de 11,1 meses.
A análise classificou os pacientes que evoluíram para intervenção tardia em dois fenótipos clínicos:
PVS - Progressive Valve Syndrome: sintomas leves (NYHA II), piora gradual de marcadores.
AVS - Acute Valve Syndrome: instalação súbita de sintomas avançados (NYHA III/IV, síncope, IC aguda).
Essa divisão é importante porque aproximadamente 40% dos pacientes em vigilância evoluíram para AVS, mostrando o quão imprevisível é a progressão da estenose grave assintomática.
👉 Pacientes que evoluíram para AVS tiveram prognóstico substancialmente pior do que aqueles tratados com TAVR precoce, com destaque para maior risco de AVC (HR 2,92).
Já para quem evoluiu apenas com PVS, a diferença entre intervenção precoce ou tardia desaparece.
Ou seja: o risco está concentrado naquele grupo que descompensa sem aviso.
A subanálise agora responde a outra pergunta: entre aqueles que acabam operados, existe diferença de resultado conforme o momento da intervenção, caso o paciente acabe descompensando agudamente.
O editorial do JACC reforça isso: a estratégia de “watchful waiting” parece segura até não ser mais. E cerca de 40% dos pacientes “graves mas assintomáticos” evoluem para AVS rapidamente, acumulando dano miocárdico silencioso, maior risco de complicações e pior desempenho pós-AVR.
🎯 Portanto, o EARLY-TAVR e sua subanálise sugerem que esperar sintomas podem expor muitos pacientes a um risco evitável, e que precisamos de mais meios para identificar aqueles em quem a intervenção precoce protege justamente contra essa evolução imprevisível.
Revascularização ou angioplastia (em mulheres)?
Coorte (European Heart Journal)
Não é de hoje que discutimos as diferenças entre os gêneros nos estudos de doença arterial coronária. Desde a subrepresentação, às diferenças no manejo clínico e intervencionista, uma verdade desconfortável permanece: mulheres recebem menos revascularização.
E, quando recebem, tendem a ser tratadas com angioplastia.
Faltava, porém, uma análise robusta do mundo real mostrando como essas duas estratégias se comportam na população feminina.
É nesse contexto que foi publicada no European Heart Journal uma grande coorte que comparou cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) versus angioplastia (ATC) exclusivamente em mulheres entre 2012 e 2021.
Como foi o estudo:
Coorte retrospectiva pareada (propensity-matched);
População: 2.469 mulheres submetidas à CRM + 3.721 submetidas à ATC.
Desfechos avaliados:
MACCE (morte, IAM, AVC, nova revascularização);
Readmissões por IAM, AVC ou IC.
Idade média: 66,5 anos
Seguimento: 5,1 anos
Resultados:
As mulheres tratadas com angioplastia apresentaram piores desfechos ao longo do acompanhamento:
MACCE: HR 1,81 (IC 1,63–2,01; p < 0,001)
Mortalidade: HR 1,34 (IC 1,16–1,54; p < 0,001)
Readmissões hospitalares: HR 1,40 (IC 1,32–1,49; p < 0,001)
Em outras palavras: a ATC foi associada a maior risco de eventos cardiovasculares maiores, mais mortes e mais readmissões, enquanto a CRM teve desempenho mais favorável e mais consistente ao longo de 5 anos.
O registro reforça que, na prática real, a cirurgia oferece resultados superiores em mulheres, contrariando a suposição de que a menor indicação de CRM nesse grupo seria “protetora” ou “adequada”.
Isso tem implicações práticas:
Mulheres continuam sendo subtratadas.
Quando tratadas com ATC em cenários complexos, acumulam desfechos piores.
A decisão entre CRM e ATC precisa considerar não apenas a anatomia, mas também o impacto comprovado da cirurgia no longo prazo para mulheres.
Resposta do desafio 24/11
Se os Dozers falaram é verdade!
No caso descrito na semana passada, o paciente havia sido submetido a radioterapia em 1978 quando tinha apenas 5 anos de idade para tratamento de um tumor torácico.
A extensa aortopatia com calcificação de todo arco aórtico configurando aorta em porcelana associada à doença coronária de acometimento proximal e valvopatia aórtica calcífica denotam provável etiologia actínica por irradiação do mediastino, justificando também a oclusão e falha da CRM com pontes mamárias. Nesse caso, o tratamento sugerido foi TAVI e angioplastia coronariana.
Desafio da semana
Fique por dentro
👀 Olho neles! A importância dos fibroblastos na injúria miocárdica e insuficiência cardíaca, em uma interessante revisão do EHJ.
🧲 Perfusão quantitativa por CMR melhora o diagnóstico em oclusão coronariana crônica. Em estudo com 130 pacientes, a avaliação automatizada do fluxo miocárdico por ressonância magnética cardíaca diferenciou bem a oclusão total crônica de estenoses graves. A combinação entre análise visual e quantificação aumentou a sensibilidade para isquemia verdadeira em casos multivasculares.
🔥 Inflamação pós-TAVI pode piorar desfechos. Revisão destaca que a resposta inflamatória exagerada após TAVI está ligada a arritmias, lesão renal e trombose valvar. Estratégias como colchicina, corticoides e controle da hipotensão podem ajudar a reduzir complicações.
🦠 Novo critério, mais sensível, mas menos específico. Estudo comparou as classificações diagnósticas de endocardite infecciosa (EI) e mostrou que os critérios atualizados da ESC e Duke-ISCVID 2023 aumentam a sensibilidade, mas reduzem a especificidade, especialmente em pacientes com dispositivos cardíacos.
🫀 Troca transcateter da valva tricúspide (TTVR) melhora função cardíaca e remodela os ventrículos. Pacientes apresentaram maior volume sistólico e acoplagem do VD, além de redução da excentricidade do VE. Benefício foi maior em quem tinha excentricidade aumentada antes do procedimento.
📚 Ainda no mundinho da insuficiência tricúspide... Revisão do JAMA reforça a importância do diagnóstico preciso e da combinação entre tratamento clínico, cirúrgico e transcateter. Com o avanço das imagens e novas técnicas como o TTVR e o TEER, mais pacientes têm acesso a terapias eficazes, especialmente aqueles com alto risco cirúrgico.






