O peso nos ombros da cardiologia
A carga das DCV no mundo, o benefício clínico do marcapasso com estimulação do ramo esquerdo e marcapasso profilático na TAVI.
O peso das doenças cardiovasculares
Estudo epidemiológico (JACC)
Colega cardiologista, como anda a dor nas costas? Em ter que carregar todo o peso do cuidado das doenças que mais levam a morbimortalidade no mundo rs…
Acaba de ser publicado no JACC o maior estudo já feito sobre a carga global das doenças cardiovasculares (DCV). O trabalho reuniu dados de 204 países entre 1990 e 2023 e trouxe números que impressionam:
As DCV continuam sendo a principal causa de morte e incapacidade no mundo.
Em 2023, somaram-se 437 milhões de anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs) e 19,2 milhões de mortes relacionadas a DCV.
O número de pessoas vivendo com alguma doença cardiovascular mais que dobrou desde 1990, alcançando 626 milhões de casos prevalentes .
O estudo aponta que 79,6% da carga de DCV é atribuível a fatores de risco modificáveis, como:
Hipertensão;
Dieta inadequada;
Colesterol LDL elevado;
Poluição do ar .
Apesar da queda nas taxas padronizadas por idade, o envelhecimento populacional e o crescimento demográfico foram os grandes motores do aumento absoluto de casos e mortes.
Destaques clínicos:
A doença isquêmica do coração segue no topo, sendo responsável por 193 milhões de DALYs e 8,9 milhões de mortes em 2023 .
Acidente vascular cerebral vem logo atrás, com 157 milhões de DALYs e 6,8 milhões de mortes .
Hipertensão arterial e obesidade ganharam relevância: o impacto da pressão alta segue sendo o maior, mas o peso da obesidade e da glicemia elevada cresce de forma acelerada .
O que isso significa para nós?
O estudo mostra que a maioria dos fatores que sustentam a epidemia cardiovascular são preveníveis e manejáveis. O desafio é transformar esse conhecimento em políticas públicas efetivas e práticas clínicas mais assertivas.
Marcapasso reloaded
Coorte (EHJ)
Pacing ventricular, o inimigo agora é outro.
Quem ainda acha que marcapasso é tudo igual precisa dar uma olhada no MELOS RELOADED, um estudo europeu multicêntrico que comparou de frente a estimulação do do ramo esquerdo do feixe de His (LBBAP) com o bom e velho pacing do ventrículo direito em pacientes com bloqueio AV e fração de ejeção preservada ou levemente reduzida.
O que rolou?
3382 pacientes incluídos, todos com necessidade de >20% de pacing ventricular.
Após pareamento por escore de propensão, foram divididos em 1691 para cada grupo.
Seguimento de 4 anos: mortalidade 11,8% menor no grupo LBBAP (HR 0,53; IC 95% 0,42–0,65).
Benefício já aparecia cedo (após ~157 dias de seguimento!).
O desfecho combinado de hospitalização por IC + upgrade para CRT também foi significativamente menor com LBBAP (4,6% vs 11,2%).
Dentro do grupo LBBAP, pacientes sem captura confirmada do feixe de condução (LV septal pacing) tiveram mortalidade maior (HR 1,85).
Por que isso importa?
O velho pacing do VD salva da bradicardia, mas cria um bloqueio iatrogênico: ativa o ventrículo de forma não fisiológica, gera dissincronia e, no longo prazo, pode induzir miocardiopatia pelo pacing.
A revisão do European Heart Journal sobre pacing fisiológico deixa claro: a ideia é usar o próprio sistema de condução do coração para preservar a ativação sincrônica. E é exatamente isso que o LBBAP entrega, uma estimulação mais próxima da condução natural, com QRS mais estreito e melhor desempenho hemodinâmico.
O MELOS RELOADED é o primeiro grande estudo a mostrar benefício de sobrevida real com LBBAP. Enquanto aguardamos RCTs em andamento, a mensagem prática é clara:
Em pacientes com bloqueio AV e expectativa de pacing ventricular alto, vale pensar em LBBAP como estratégia de primeira linha.
❗️Mas atenção: confirmar a captura da via de condução faz toda a diferença nos resultados.
Prevenir é melhor que remediar?
Subanálise estudo PROMOTE (JACC: Cardiovascular Interventions)
Quem trabalha com TAVI sabe: o procedimento é incrível, mas os distúrbios de condução continuam sendo uma pedra no sapato. Bloqueios novos, QRS alargado, PR alongado… sempre fica a dúvida: será que já devo indicar marcapasso?
Uma subanálise do estudo PROMOTE, publicada no JACC Interventions, trouxe luz a essa zona cinzenta.
Foram avaliados 2.110 pacientes submetidos ao TAVI sem marcapasso prévio, dos quais 329 precisaram de MP. Destes, 80 (24%) receberam o dispositivo de forma profilática, basicamente por novo BRE persistente (QRS >150 ms) e/ou PR >240 ms.
O que acharam?
Necessidade real de pacing foi mínima nos profiláticos: apenas 2% tiveram pacing ventricular significativo, contra 73% no grupo de indicação clássica.
Mesmo quando a decisão foi guiada por estudo eletrofisiológico (intervalo HV >70 ms), a dependência de marcapasso não aumentou (2,0% vs 1,9%).
Desfechos clínicos em 30 dias (óbito, AVC, complicações maiores) foram semelhantes entre grupos.
E a mensagem prática?
Colocar marcapasso profilático nesses pacientes parece, na maioria das vezes, um exagero. A estratégia mostrou baixa utilidade, prolongou a internação e raramente resultou em dependência de pacing.
O estudo reforça que, na ausência de bloqueios avançados, o melhor caminho é manejo conservador com reavaliação ambulatorial seriada, em vez de implante automático baseado só em PR ou QRS alterados.
Chip da beleza é anabolizante, sim!
Caiu na Mídia
Tenho certeza que você viu algum dos vários posts que circularam sobre a mais recente polêmica da ex-integrante da chácara Talismã, Virgínia Fonseca.
Em entrevista a Leo Dias, a influencer negou prontamente o uso de anabolizantes e disparou: usava apenas um “chip de testo”.
A frase viralizou e, como bem destacou a revista Veja: “chip da beleza é anabolizante, sim!”.
Sim, estamos dando palco para quem claramente vive de palco. Mas, convenhamos que é uma ótima oportunidade para revisarmos, com evidência na mão, as principais definições e os impactos cardiovasculares dos anabolizantes.
Afinal, Dozer que é Dozer precisa estar pronto para rebater os charlatões com ciência e evidência na ponta da língua.
A primeira pergunta é: chip da beleza é anabolizante mesmo?
Esses chips nada mais são do que implantes hormonais subcutâneos que liberam substâncias de forma contínua.
E aqui mora a “criatividade” do mercado paralelo:
Podem trazer EAA clássicos (testosterona, oxandrolona, durateston, trembolona…)
Ou a famosa gestrinona, que apesar de não ser um EAA “puro”, é um derivado da 19-nortestosterona com efeito androgênico bem evidente nas mulheres.
O problema não é só o conteúdo, mas o pacote completo: doses totalmente fora da curva, liberação imprevisível e nenhuma evidência séria de segurança.
Uma das melhores evidências dos malefícios dos EAA vem de uma coorte dinamarquesa que incluiu exclusivamente homens e demonstrou riscos muito maiores de arritmias, infarto e insuficiência cardíaca.
Já em relação às mulheres e ao chips da beleza, a Diretriz Brasileira sobre Saúde Cardiovascular no Climatério e Menopausa de 2024 orienta:
Hormônios bioidênticos manipulados e implantes hormonais não são recomendados pela ausência de evidência de eficácia e segurança.
A prescrição deve ser baseada em formulações testadas, com dose e via definidas, sempre individualizando riscos e benefícios.
Obrigada pelo desserviço, srta. Virgínia. Depois de frustrar milhares com promessas de shape milagroso, agora espalha definições erradas sobre os EAA (injetar é “vilão”, mas implante artesanal pode?).
No fim, beleza de verdade é saúde. E essa, nenhum chip entrega.
Por fim, fica a dica de um resumo completo sobre o tema:
Imagem da semana
Ao se deparar com esse ecocardiograma transtorácico e esse ECG, qual o primeiro diagnóstico que vem a sua cabeça?
Discussão levantada no nosso Instagram, confira a resposta!
Fique por dentro
🧲 O realce tardio é o novo ECG para risco de morte súbita? Revisão publicada no EHJ destaca o papel da ressonância com gadolínio como marcador de fibrose miocárdica e sua crescente importância na estratificação de risco para morte súbita em cardiopatias isquêmica e não isquêmica.
📝 Doença carotídea: consenso europeu une especialidades para orientar decisões. A ESC reuniu especialistas de diversas áreas e países para atualizar o manejo da aterosclerose carotídea, reforçando o papel da imagem, dos tratamentos modernos e da integração multidisciplinar.
🎯 Valva tricúspide em foco: novos tempos, novas soluções. A rápida evolução dos tratamentos transcateteres para insuficiência tricúspide (TR) motivou essa nova diretriz do ACC, que resume os avanços mais relevantes em diagnóstico e manejo.
👶🏼 Jovem também precisa tratar a hipertensão. Estudo italiano com mais de 280 mil pacientes mostrou que aderir ao tratamento anti-hipertensivo reduziu hospitalizações por eventos cardiovasculares em adultos de 18 a 39 anos, com efeito protetor semelhante ao observado em pacientes de 40 a 55 anos.
🏃🏽♀️ ECG duvidoso em atleta: e agora? Novo documento de especialistas europeus orienta como lidar com alterações eletrocardiográficas de significado incerto em atletas assintomáticos.
🩸 Antitrombótico em angioplastia complexa: intensidade sob medida. Revisão destaca que, em pacientes submetidos a angioplastias complexas, o equilíbrio entre isquemia e sangramento exige personalização. Estratégias como DAPT prolongada, monoterapia com P2Y12 e dupla inibição via plaquetária e anticoagulante são discutidas conforme perfil do paciente e complexidade do procedimento.
🏋🏽♀️ Obesidade pesa (literalmente) no coração de quem tem fibrilação atrial. Estudo com pacientes submetidos à ablação por FA mostrou que obesos apresentam maior risco de IC com fração de ejeção preservada (HFpEF), com pior hemodinâmica atrial e maior volume de gordura epicárdica, sugerindo papel-chave da cardiomegalia e restrição pericárdica.
💨 Miocardiopatia hipertrófica não obstrutiva: doença sem alívio. A forma não obstrutiva da CMH segue sem terapia específica aprovada, com alta morbidade e limitações na vida diária. A revisão publicada no JACC: Heart Failure destaca a necessidade urgente de tratamentos direcionados, enquanto os ensaios clínicos ganham força nos últimos anos.
🫀 Transplante parcial de coração: uma nova esperança nas cardiopatias congênitas. Série de casos com 19 crianças mostrou que o transplante valvar de semilunares de doadores via procedimentos “domino” (aproveitando válvulas de corações explantados de transplantes completos) ou técnica “split root” (dividindo um coração para múltiplos receptores) é factível, seguro e eficaz. As válvulas cresceram junto com os pacientes, sem disfunções relevantes ou efeitos colaterais da imunossupressão.