Quanto custa um coração?
E um lembrete que há muito a aprender sobre a disjunção do anel mitral
Disjunção do anel mitral: um lembrete de que ainda sabemos pouco
Coorte (EHJ)
Começando esta semana de feriado com um legítimo chá de humildade para os cardiologistas.
O European Heart Journal trouxe um tema espinhoso, sombrio e ainda cheio de lacunas: a disjunção do anel mitral (DAM) — uma entidade que mistura valvopatia, alteração estrutural e arritmias ventriculares, e que ainda assusta pela sua imprevisibilidade.
Mas e se a gente opera esses pacientes? O risco de arritmias graves e morte súbita cai?
Foi essa a pergunta que o pessoal do Karolinska Institutet, na Suécia, tentou responder.
Eles compararam pacientes operados por prolapso mitral isolado com aqueles que também tinham DAM — um achado que cada vez mais parece ter vida (e risco) própria.
O estudo:
Tipo: retrospectivo.
599 pacientes com PVM e insuficiência mitral moderada ou grave, operados entre 2010 e 2022.
16% tinham DAM verdadeira (mediana de 8 mm).
Mediana de seguimento: 5,4 anos.
Desfecho primário: ocorrência de arritmias ventriculares (TV sustentada/não sustentada ou alta carga de extrassístoles).
O que encontraram?
Mesmo após correção anatômica da DAM durante a cirurgia, esses pacientes tiveram um risco 3 vezes maior de arritmia ventricular (HR 3,33; IC95% 1,37–8,08).
Cada milímetro adicional de disjunção aumentava em 25% esse risco.
A DAM foi mais comum em mulheres, pacientes mais jovens (média de 55 anos) e altamente associada à Doença de Barlow e prolapso bileafletado.
O estudo reforça a ideia de que a disjunção do anel mitral não é apenas um achado anatômico — é uma miocardiopatia estrutural de risco, que carrega consigo o temor real de arritmias e morte súbita.
A cirurgia valvar pode corrigir a insuficiência mitral, mas não elimina o risco elétrico. Ou seja, vigiar e monitorar continua sendo o nome do jogo.
Quanto custa um coração?
Custo-efetividade (JAMA)
Parece até filosofia, mas no caso do artigo publicado no JAMA Network Open, ela é bem literal.
O estudo avaliou o custo-efetividade do implante de dispositivos de assistência ventricular esquerda (LVAD) em pacientes com insuficiência cardíaca avançada e inelegíveis para transplante em Singapura — país que, inclusive, está discutindo se deve ou não subsidiar esse tipo de intervenção.
O que foi feito:
Foi usado um modelo de Markov para simular sobrevida, qualidade de vida, eventos adversos e custos ao longo de 15 anos.
Compararam LVAD (HeartMate 3) com o manejo clínico otimizado.
A análise foi estratificada entre pacientes dependentes de inotrópicos e independentes, já que o prognóstico (e o custo!) mudam bastante entre os grupos.
📊 Antes de chegarmos nos resultados…
Preciso que você entenda o conceito de QALYs (Quality-Adjusted Life Years), uma métrica usada em estudos de custo-efetividade na saúde para medir o valor de uma intervenção médica.
A ideia é combinar em um único número tanto a quantidade de vida obtida quanto a qualidade dessa vida: um QALY equivale a um ano de vida em plena saúde.
Por exemplo, viver dois anos com qualidade de vida reduzida pela metade (como em uma doença limitante) também contaria como um QALY.
A partir do QALYs, o estudo calculou o ICER (razão de custo-efetividade incremental) sob a fórmula: ICER = (Custo da nova intervenção – Custo do tratamento padrão) / (QALYs da nova intervenção – QALYs do tratamento padrão).
Assim, o ICER nos indicará quanto custa, em dólares de Singapura, ganhar um QALY a mais ao fazer transplante cardíaco, comparado a não fazer.
Entendida a matemática, vamos aos resultados principais:
População total: LVAD gerou 3,45 QALYs a mais que o tratamento clínico otimizado, com custo adicional de SGD (Singapore Dollar) 404.678 (~US$ 302 mil). Isso gerou um ICER de SGD 117.370 (US$ 87.590) por QALY — acima do limiar de custo-efetividade do país.
Dependentes de inotrópico: ICER caiu para SGD 106.458 (US$ 79.446), com 59% de chance de ser custo-efetivo.
Independentes de inotrópico: ICER foi de SGD 174.798 (US$ 130.446), com apenas 19% de chance de ser custo-efetivo.
Ou seja, para pacientes com IC terminal dependentes de inotrópico, o LVAD parece ser um investimento plausível — principalmente se o custo de implantação cair 20–33%. Já para pacientes independentes, seria preciso cortar quase pela metade o preço do implante ou dobrar o benefício em sobrevida para que valesse a pena.
Sob a ótica de saúde pública, o estudo joga luz sobre uma questão incômoda: a tecnologia vale sim o investimento, mas a questão é selecionar para quem.
Quanto antes, melhor
Coorte (JACC)
Se você ainda está na era da “escadinha do colesterol” e espera o LDL subir para só então incluir a ezetimiba, está na hora de repensar.
Um estudo recente publicado no JACC e conduzido com mais de 35 mil pacientes do registro SWEDEHEART mostrou que iniciar ezetimiba até 12 semanas após o IAM reduz significativamente eventos cardiovasculares futuros.
Foram mais de 35 mil pacientes acompanhados por quase 4 anos, todos recebendo estatina de alta intensidade. E os resultados não deixam dúvidas:
MACE em 1 ano:
Ezetimiba precoce: 1,79/100 pacientes-ano;
Ezetimiba tardia: 2,58;
Sem ezetimiba: 4,03.
Morte cardiovascular em 3 anos:
Ezetimiba precoce: referência;
Tardia: 64% maior risco;
Sem ezetimiba: 83% maior risco.
E não foi só no desfecho duro: pacientes do grupo precoce também atingiram as metas de LDL mais rapidamente e de forma sustentada. Mesmo começando com LDL basal mais alto, chegaram mais longe — e mais rápido.
Mais de 75% dos pacientes não atingem metas de LDL-C com estatina isolada. Mesmo em regimes de alta intensidade, a adição precoce de ezetimiba favorece a redução mais rápida e sustentada do risco cardiovascular. O estudo reforça que a combinação estatina + ezetimiba deveria ser iniciada antes mesmo da alta hospitalar — em linha com diretrizes mais recentes.
🤓 Bônus nerd:
Para os apaixonados por metodologia e modelos estatísticos, esse estudo é uma obra de arte!
Utilizando a metodologia clone-censor-weight, os autores simularam um ensaio clínico randomizado em um ambiente de vida real, minimizando vieses comuns em estudos observacionais.
O atraso custa caro. E quanto antes você combinar ezetimiba com estatina no pós-IAM, menor o risco para o paciente. Não é só alcançar o LDL ideal, é quando você começa a tentar.
Uma série médica “real”?
Caiu na Mídia
Se você já está acostumado com séries médicas cheias de melodrama e cirurgias mirabolantes em todo paciente com dor no peito (olá, Grey's Anatomy rs), talvez leve um choque com a nova produção da Max: The Pitt.
A séria acompanha, hora a hora, a rotina de um dia de trabalho em um hospital de Pittsburgh, enquanto os médicos lidam com crises pessoais, pacientes enfurecidos, políticas restritas e a falta de recursos para realizar o seu trabalho.
Te lembrou aquele seu plantão de ontem, né?!
A proposta é clara: mostrar a emergência do pós-COVID como ela é, sem floreios nem filtros, sob a ótica de quem realmente está na linha de frente. E o resultado é uma série tensa, crua e que tem recebido ótimas avaliações da crítica.
Se você gosta de ver sua profissão retratada com um mínimo de realismo, vale a pena dar uma chance.
Mas se está buscando fugir da medicina nas horas vagas, talvez seja melhor tentar uma Emily in Paris mesmo rs.
Imagem da semana
Ressonância magnética cardíaca de paciente com cardiomiopatia hipertrófica com 2 interessantes achados anatômicos que nos fazem lembrar que a patologia mitral da CMH vai além do SAM (systolic anterior moviment): anteriorização do músculo papilar anterolateral (seta branca) e papilares extranumerários (seta vermelha).
Fique por dentro
👴🏼 AHA Statement mostra a dificuldade no cuidado de pacientes com indicação de cuidados paliativos! Um bom tema para a DozeNews Prime, concorda?
⚡️ Pulso elétrico na FA? A ablação por campo pulsado (PFA) foi não inferior — e possivelmente superior à crioablação para prevenção de recorrência de arritmia em pacientes com FA paroxística. Em estudo com monitoramento contínuo, a taxa de recorrência foi menor com PFA (37% vs 51%), com eventos adversos igualmente baixos. Técnica promissora e cada vez mais sólida no tratamento da FA!
😷 A cardiologia intensiva está em plena transformação! Consenso publicado no JACC destaca os desafios na estrutura, na formação de especialistas e nas oportunidades de pesquisa que moldam o futuro da cardiologia intensiva. O cuidado crítico cardíaco virou uma nova fronteira da especialidade.
🩸 Rivaroxabana sangra mais, apixabana trombosa mais? Estudo observacional com mais de 13 mil pacientes mostrou que o risco de sangramento foi maior com rivaroxabana, enquanto eventos trombóticos foram mais frequentes com apixabana — comparado ao warfarin. Já a mortalidade e as internações por sangramento foram menores com apixabana.
🫁 Trombectomia mecânica ou trombólise dirigida por cateter no TEP de alto risco? Estudo com idosos mostrou que, entre pacientes com TEP grave (choque, parada ou uso de vasopressor), as taxas de mortalidade, readmissão e sangramento foram semelhantes entre os grupos. Que tal ler a DozeNews Prime sobre o tema e compreender melhor o assunto?
🫀 Prevenção de insuficiência cardíaca: AHA Statement propõe conduta ativa na busca de fatores associados ao desenvolvimento de IC!
💉Cangrelor na angioplastia é esperança nos casos de choque cardiogênico? Estudo sueco mostrou que o seu uso em pacientes com choque cardiogênico reduziu eventos cardiovasculares e mortalidade em 30 dias, sem aumento significativo de sangramento. Já nos casos pós-parada cardíaca, não houve benefício clínico e o risco de sangramento foi maior.
💊 Flecainida mostra segurança e eficácia na displasia arritmogênica do VD! Em estudo multicêntrico com 191 pacientes, o uso de flecainida reduziu significativamente a carga de extrassístoles ventriculares, episódios de TV não sustentada e eventos arrítmicos sustentados — inclusive em quem tinha envolvimento do VE ou mutações genéticas como PKP-2.
💪🏼 Eplerenona pode reduzir fibrose na miocardiopatia hipertrófica não obstrutiva. Em ensaio randomizado com 61 pacientes, o uso por 12 meses levou à queda no T1 nativo da ressonância, sugerindo redução de fibrose difusa. Apesar disso, não houve melhora funcional nem em parâmetros de função diastólica.
💥 Fibrilação atrial e IC com fração de ejeção preservada: ablação pode ser ainda mais benéfica. Subanálise do CABANA mostrou que pacientes com IC FEP tiveram maior redução em hospitalizações e mortalidade cardiovascular com ablação, além de menor recorrência de FA.
🔪 Enxerto arterial único já era? Estudo com quase 60 mil pacientes na Austrália e Nova Zelândia mostrou que a revascularização miocárdica com múltiplos enxertos arteriais reduziu a mortalidade em longo prazo em comparação ao uso isolado de enxerto arterial com veia safena — independentemente da fração de ejeção.